O Doador de Memórias (Lois Lowry)
Assim como Jonas pensa cuidadosamente antes de
definir qual é a emoção e sentimento que pode compartilhar no momento devido,
tentando achar a melhor palavra que o defina, esse é mais ou menos o meu dilema
ao terminar de ler O Doador de Memórias.
Eu adorei o livro, de uma maneira profunda que eu não podia nem chegar a
imaginar antes de abri-lo, mas ao mesmo tempo eu fiquei perturbado. O livro te
abala, mexe com você de maneira desafiadora, e te leva a pensamentos
desconcertantes sobre a realidade, a vida e seus sentimentos. Aí está:
desconcertante. Muito melhor do que “perturbador”, embora também não o deixe de
sê-lo.
O livro é desconcertante.
Jonas vive numa sociedade aparentemente perfeita.
A comunidade, como é chamada, é um local ideal onde não existe dor,
desigualdade, guerra nem qualquer tipo de sofrimento; as pessoas naquele lugar
não conhecem a dor. São extremamente educadas, pensam meticulosamente cada uma
de suas palavras, e seguem convenções enraizadas que regem a “paz” no local.
Por outro lado, além de não conhecer nenhuma dor, eles não conhecem, de fato,
nenhum tipo de sentimento bom: amor, desejo ou alegria. Na verdade, parece que
nenhum de seus sentimentos é devidamente verdadeiro, genuíno – sempre
manipulado para ser determinada coisa.
Questionamo-nos, assim, que tipo de lugar é esse.
Se não conhecemos a dor e o sofrimento, como poderemos conhecer a alegria?
Parece batido, mas você certamente já ouviu os dizeres de que “só sabemos
apreciar os momentos de felicidade por causa dos momentos de tristeza”.
Saberíamos, realmente, o que é a alegria se não tivéssemos um lado negativo com
o qual compará-lo? Então, de que, de fato, se consolida a “felicidade”? E o que
é uma sociedade perfeita? Um mundo sem sofrimento, sem conflitos…? Onde as
pessoas não sintam, não amem e não vivam de verdade? Que preço a humanidade
está disposta a pagar pela dita “paz”?
Todos os habitantes da comunidade são
irremediavelmente conformados com esse tipo de vida, justamente por não
conhecerem uma alternativa. Acreditam-se felizes e perfeitamente organizados.
Adoram o mundo sem cores em que vivem, os animais que não passam de imaginação,
os sentimentos controlados que acreditam ter, e a manipulação tão evidente
através das Cerimônias de Dezembro. Chega a ser angustiante ler cada uma dessas
cenas, e ver o absurdo da Nomeação, quando as crianças-novas são designadas a
famílias diversas, ver os Nove ganhando suas bicicletas finalmente livres para
andar livremente pela comunidade, ver os Doze receberem suas Atribuições, que
foram perfeitamente escolhidas para eles, através de muita observação.
“Porque
seria um absurdo deixá-los escolher. Eles poderiam escolher errado”
O mundo aparentemente ordenado e ideal começa a
desmoronar para Jonas no momento em que ele se torna o próximo Recebedor de
Memórias. Nenhuma memória de sentimentos, de lugares ou da vida antes da
Mesmice é mantida na comunidade, apenas pelo Recebedor. E durante o
treinamento, pelo Recebedor (o Jonas) e o Doador (o antigo e atual Recebedor).
Assim que ele começa seu treinamento e começa a experimentar sensações como
descer uma colina de trenó em um dia de neve ou, muito pior, vivenciar a dor e
o sofrimento de uma guerra, Jonas começa a enxergar as cores, a ter
sentimentos, e a questionar sua realidade, que finalmente lhe parece tão
artificial.
E como mudar um panorama tão bem estruturado, com
conhecimento que ninguém além dele conhece? Como convencer as pessoas de que o
mundo tem cor, se elas não conseguem nem ao menos entender esse conceito? Como
convencer a comunidade de que o amor (como aquele que ele sentiu tão forte na
lembrança de um Natal em família!) é um sentimento maravilhoso e revigorante?
Como ensiná-los a viver por eles mesmos se eles são tão comodamente controlados
a serem o que as pessoas quiserem que eles sejam? Como mostrar que eles
poderiam, sim, fazer suas próprias escolhas, porque isso já aconteceu
anteriormente? E que mesmo com todos os problemas e escolhas erradas, viver, de verdade, valia a pena?
Nossos olhos vão se abrindo para uma nova
realidade ao lado de Jonas, que se sente angustiado em seu mundo que não é mais
o que ele pensava ser. E também cresce o sentimento de que alguma coisa precisa
ser feita, de que as coisas precisam mudar… e isso vai acontecendo no livro de
maneira muito sutil, com pequenos acontecimentos pontuais que desencadeiam uma
série de ações: o fracasso de 10 anos atrás, o sofrimento do Doador, o amor que
Jonas desenvolveu por Gabriel ao ajudar a fazê-lo dormir todas as noites, a
descoberta do que acontece quando alguém é “dispensado”… e Jonas resolve
arriscar. Jonas resolve fazer a única coisa que lhe parece cabível, uma vez que
a comunidade precisa conhecer o que ele conhece, e ele não pode mais ficar ali
sabendo de tudo aquilo. E do perigo eminente.
E foge.
O final é perfeitamente reflexivo e nos deixa,
certamente, angustiados e contentes ao mesmo tempo. O que permanece, muito mais
do que uma série de eventos grandiosos, é o sentimento que guia toda a
narrativa, e a intensidade das emoções que o finalizam. Não sabemos a reação na
comunidade para a fuga de Jonas ou sua Perda, nem se eles chegaram a receber
mesmo suas memórias, ou como ele será recebido além da colina, em seu trenó com
Gabriel… mas tudo isso resume o livro de maneira belíssima: deixando os
questionamentos, as dúvidas e as reflexões para depois que você terminar de
lê-lo, porque isso é tudo o que importa… um livro grandioso e desafiador, que
deveria ser lido por todos, e guardado com um carinho especial em nossas vidas.
Comentários
Postar um comentário