A Escolhida (Lois Lowry)
Órfã e portadora de uma
deficiência, Kira precisa enfrentar um futuro assustadoramente incerto. Vivendo
em uma civilização que descarta os mais fracos, ela sofre hostilidade dos
vizinhos, que a acusam de ser inútil para a comunidade. Quando é chamada a
julgamento pelo Conselho dos Guardiões, Kira se prepara para lutar pela vida.
Mas, para sua surpresa, os autoritários chefes já têm outros planos e a
encarregam de uma tarefa grandiosa: restaurar os bordados de uma túnica
centenária que contam a história do mundo.
“O azul
estava em sua mão e ela conseguia senti-lo palpitar […]”
Mais um livro fenomenal pelas habilidosas mãos de
Lois Lowry, que consegue expandir o universo d’O Doador de Memórias sem citá-lo, sem trazê-lo de volta em nenhum
momento, mas nos permitindo perceber a conexão. É uma nova visão do mundo, uma
outra sociedade, mas as reflexões às vezes se chocam, e nós nos assustamos com
a astúcia e detalhamento de sua escrita assustadora. De maneira incrivelmente
poética, a autora conduz uma escrita quase poética que, novamente, fala sobre a
própria natureza humana e questiona a maneira como nós vivemos, pensamos e/ou
nos relacionamos com a sociedade ao nosso redor; como recordamos o passado,
como mantemos o poder, como manipulamos o futuro. E ela coloca todo o poder do
futuro nas mãos de três crianças que podem fazer toda a diferença, mas que não
passam de uma alegoria a cada um de nós e a nossa importante participação na
mudança. É genial.
O livro apresenta outra comunidade – e nessa
comunidade, as pessoas que nascem com alguma deficiência, como Kira e sua perna
torta, são deixadas no Campo para morrerem, serem
levadas pelas feras. Pautado em cima de muita inveja e rivalidade, a vida
naquela sociedade é guiada não por carinho nem por amor, mas por exaustivos
trabalhos rotineiros e uma sensação de que se vive apenas para cumprir algum
combinado. Os pequenos são tratados sem nenhum tipo de carinho, as mulheres
trabalham e os homens saem para caçar. Não há interação social bacana, não há
conversa, não há um ajudando o outro. Apenas trabalho e apenas sentimentos
pesados de inveja. E quando Kira senta-se para restaurar a importante túnica do
Cantor, ela descobre muito sobre o passado que lhe é contado anualmente, mas no
qual nunca realmente prestou tanta atenção. E ela percebe que é dela o poder de
fazer alguma coisa.
De maneira impressionante, Lois Lowry conduz,
novamente, uma leitura prazerosa e revoltante. Cada virar de página é feito com
uma certa angústia e um anseio por mudança, por revolução – mas ela narra com
uma cadência e uma calma que tornam o livro poético. O lirismo da narrativa nos
conduz por sentimentos muito controversos e pensamentos muito intensos – nós
passamos a questionar coisas atrás de coisas, e começamos a pensar. Os livros dessa série são
precisamente escritos para nos levar a pensar. A questionar. Diferente de O
Doador de Memórias, o livro se assemelha a ele em inúmeras ocasiões, e você
percebe, ao fim, que é, na verdade, apenas uma outra sociedade que se organizou
de maneira autoritária e revoltante, e que precisa de uma revolução. Precisa de
um Jonas, que nesse caso é a Kira. E o poder diminuto é o suficiente para gerar
a vontade de lutar. E a vontade de lutar, independente do resultado final, é o
que importa.
Adoro toda a sutileza de Lois Lowry – a autora
narra com um cuidado abençoado, tecendo uma história poética, repleta de
metáforas e simbologia. O vermelho da Garança. A ausência de azul, que é mais
difícil de conseguir. A importância do trabalho para a manutenção da memória da
história do mundo até a Ruína e depois da Ruína, um trabalho conjunto da
Tecelã, do Entalhador e do Cantor. A que cria as figuras da túnica, o que cria
as imagens do cajado e o que canta as imagens da história do mundo. É poético e
fluído, ler A Escolhida parece uma
verdadeira celebração. E assim como O
Doador de Memórias tinha toda uma questão com o vermelho, a primeira cor que Jonas passa a ver quando seus olhos
vão se abrindo e as memórias vão sendo recebidas, a ênfase na simbologia das
cores é muito marcante na obra de Lois Lowry, com um destaque especial para o
azul nesse caso, e é belíssimo quando ele finalmente aparece.
A escrita é muito inovadora, muito repleta de
detalhes. É uma construção detalhada da cultura, dos costumes, de como as
pessoas encaram a própria vida e de como a vivem. É uma sociedade BEM diferente
aqui do Doador de Memórias, tem uma
abundância de cores, por exemplo, as pessoas PARECEM mais livres, mas é também
mais bruta, mais seca, violenta, inumana. O que os torna prisioneiros, apenas
de elementos diferentes. Em se tratando de toda a construção da sociedade, isso
dá um longo estudo maravilhoso que eu não farei aqui, mas que faria com orgulho
em um trabalho futuro… mas o livro já se inicia com Kira no Campo, velando o
corpo da mãe durante quatro dias, até que o seu espírito tenha partido; há
também toda a crença de que crianças nascem sem espírito, ainda não são
pessoas, e que o recebem mais tarde, junto com a primeira sílaba. A construção
da hierarquia através das sílabas, e não das idades, é profundamente
inteligente. Kira tem tem duas sílabas, assim como Thomas. Matt e Jo apenas
uma.
E o importante conhecimento de Annabella, com suas
quatro sílabas.
A leitura flui de maneira impressionante, e você
não quer largá-la em momento algum. Depois da morte da mãe, Kira acaba
remendando a túnica do Cantor, e visitando Annabella constantemente para
aprender a arte da tintura. E ela lhe revela uma das coisas mais assustadoras: “Não tem fera nenhuma”. Depois que Kira
foi assustada por um som na floresta, ela recebeu essa informação da inexistência
de feras – e a revolta contra os cuidadores, que tanto falam em pessoas
“levadas pelas feras”, me fez pensar em Alhures. E em como essas pessoas não
eram realmente “levadas pelas feras”, mas brutalmente mortas porque não eram
mais necessárias. Ou porque seus filhos o eram, como foi o caso de Thomas. Por
ter crescido dentro do Edifício, Thomas tem uma personalidade diferente de
Kira. De certa maneira complementar, mas ao mesmo tempo mais submetido ao
sistema, enquanto Kira vai desenvolvendo a capacidade de pensar e, mais
importante, de questionar.
Annabella ainda lhe informa: “Eles têm azul praqueles lados”.
E é fortíssimo como Lois Lowry continua a
narrativa… quando Kira conversa com Jamison sobre o medo que sente das feras,
ele lhe responde com um significativo “Não
há o que temer desde que você não se desvie do caminho”. Nessas palavras.
Tudo está bem enquanto ela seguir as ordens, enquanto fizer o que lhe mandarem,
enquanto ela não aprender a questionar – por isso foi com um nó na garganta que
eu sabia que Annabella não poderia sobreviver, mas chorei quando Matt contou
que a velha tinha morrido e sido levada para o Campo. Como eles sabiam que ela
tinha morrido se ela morava sozinha? Como tinham sabido que tinham que ir até
lá? Eu queria gritar com Kira para que ela abrisse os olhos mais depressa do
que estava acontecendo, mas acho que Matt (ah, o adorado Matt!) fez isso de
maneira muito mais eficaz ao ir “praqueles lados” e lhe trazer respostas que
ela esperava, mesmo que não soubesse que as esperava.
Os personagens são construídos de maneira
inteligente. Annabella. Kira. Thomas. Matt. Jo. Quando Jo canta livremente,
expressando um conhecimento que ainda não poderia ter, com as palavras fluindo
dela naturalmente. Quase magia. Como
o pedaço de pano que “se bordou sozinho” e que “conversava” com Kira. Como o
pedaço de madeira que “se entalhou sozinho” e que “conversava” com Thomas. Os
três artistas. A Tecelã do Futuro. O Entalhador do Futuro. A Cantora do Futuro.
E isso é fortíssimo, porque eles têm a capacidade de CRIAR o Futuro eles
mesmos, através da parte lisa da túnica, da parte lisa do cajado, ou das
canções que a Jo entoa sozinha. Mas eles não dispõem da liberdade de fazer o que eles quiserem, porque seus superiores vão simplesmente lhe contar o
que querem que eles cantem, bordem ou entalhem. Revoltante? Sutilmente
angustiante como Lois Lowry é capaz de fazer na sua celebração poética.
Matt nos conquistou muito rapidamente no livro, e
eu comecei a amá-lo por ser um pequeno tão adorável e tão prestativo, por ser
um verdadeiro amigo de Kira e ter um coração bondoso – não parecia pertencer ao
Brejo, ou a qualquer parte daquela sociedade violenta, cruel e sem amor. Me
revoltei mais que nunca quando ele passou dois dias desaparecido (desesperado
eu), especialmente quando ninguém no Brejo sabia de seu paradeiro, o garoto que
alegrava o lugar com seu sorriso. Mas seu irmão me fez soltar o suspiro mais
aliviado de todo o livro quando lhe contou que ele estava indo atrás dos
amigos, mas que tinha que levar um presente. Por isso ele ia levar azul pra
eles. Quando Matt aparece, durante a Congregação (toda a cerimônia que enaltece
o lirismo e a grandiosidade do Hino, que conta a história do mundo para que as
pessoas possam se lembrar dela), trazendo não apenas o pedaço de tecido azul,
mas também o próprio pai de Kira.
Vê-la com Christopher, cego, e entender onde ele
está e como está vivendo.
Foi emocionante.
O final foi diferente do que eu imaginava, mas
também ao ler Lois Lowry eu tenho dificuldade em prever exatamente o que está
para acontecer. Eu pude respirar com alívio com a descrição do tal “Vilarejo da
Cura” em que Christopher vive, um lugar onde as pessoas que foram deixadas no
Campo para morrer são AJUDADAS por outras pessoas, onde se vive com harmonia, onde
as pessoas se gostam, onde os pequenos são tratados com carinho. Um lugar,
diferente da rivalidade e da inveja que rege a sociedade de Kira, onde se pode
verdadeiramente ser feliz. E Kira quase vai embora com o pai. Mas se lembra do
Cantor sendo mantido prisioneiro, com a terrível visão de seus pés sangrando e
as correntes, e ela sabe que não pode deixar que isso aconteça com Jo. Com
Thomas. Com qualquer um. Foi uma bonita escolha a dela, de ficar ali e
construir, como Tecelã do Futuro com o Entalhador e a Cantora do Futuro, aquele
futuro que ela queria ver. Aquelas possibilidades que tornam o seu vilarejo
mais parecido com o vilarejo de seu pai.
Como sempre, Lois Lowry sendo emocionante,
reflexiva. Cheia de esperança.
Lindíssimo.
“[…] como
se tivesse recebido o sopro da vida e começasse a renascer”.
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