Sergio Y. vai à América (Alexandre Vidal Porto, 2014)


Um romance que investiga, com sabedoria e delicadeza, as fronteiras da sexualidade no mundo contemporâneo. E vai além: com inteligência penetrante e uma prova concentrada, Alexandre Vidal Porto constrói uma ficção sobre um jovem bem-nascido que muda radicalmente de vida. E de destino. Sergio Y., paciente do consultório psiquiátrico do narrador, abandona de subido o tratamento, reescrevendo a própria história e a de seu psiquiatra. Uma ficção em que memória e esquecimento, revelação e ocultamento ajudam a compor um atualíssimo testemunho sobre nossa cultura e nossas mais secretas emoções.

“Mamãe, eu nunca achei que chegaria a ser tão feliz quanto agora”
Um livro surpreendente que me emocionou profundamente, do início ao fim. Com uma temática inovadora na literatura, e tratada com uma humanidade impressionante, o livro nos comove desde o começo, quando o Dr. Armando está se apresentando, bem como o seu “paciente interessante”. A maneira como o autor trabalha a linguagem é de extrema importância, e me conduziu não só para dentro da obra mas também para um estado de pura imersão na qual eu conseguia sentir intensamente o que os personagens sentiam, com as angústias comprimindo o meu peito desde o começo, enquanto eu, simultaneamente, admirava a beleza poética da maneira introspectiva como éramos guiados a conhecer os personagens e a se aventurar dentro de suas personalidades, dúvidas, sofrimentos e, por que não?, alegrias. Sergio Y. vai à América é profundo e trata com propriedade um tema atualíssimo, realmente, com toda a convicção de poder comover o leitor e levá-lo a inúmeras reflexões.
Em determinado momento, senti-me como me sinto ao ler David Levithan. Eu adoro David Levithan e quase todos os seus livros profundamente. Dois Garotos se Beijando, que eu li em inglês antes de a tradução estar disponível, é, para mim, um dos melhores livros que eu já li na vida, e o autor trabalha com a certeza de que conhece aquilo sobre o que está falando. David Levithan trabalha com a homossexualidade em inúmeras de suas obras, sempre com uma propriedade impressionante. O tema trazido por Alexandre Vidal Porto é ainda mais inovador: a transexualidade. Embora ele fale sobre o livro que conta a história de Angelus Zebrowskas, eu devo admitir que o tema da transexualidade é muito atual e ganha espaço agora, pouco se tem notícia dele na literatura. Atualmente o vemos surgir com ênfase em séries de TV ou filmes, como é o caso de Sense8, mas eu mesmo não me recordo de jamais ter lido um livro cuja temática que perpassa toda a obra fosse essa. E Alexandre Vidal Porto traz justamente essa proposta.
Embora não seja, necessariamente, a temática do livro.
Acredito que Sergio Y. vai à América é sobre muito mais do que a transexualidade. O próprio personagem de Armando, o psiquiatra, e todas as suas angústias, são um exemplo claro de um personagem-narrador rico que merece ser estudado e trabalhado. Ele tem um sentimento de incompletude por ter tido um de seus melhores pacientes abandonando o tratamento subitamente, e ele não ter mais ouvido falar dele por tanto tempo. E Armando igualmente luta com um problema gravíssimo de ego. Muito lhe interessa o caso de Sergio Y. (perceba que, com exceção do obituário, Sergio nunca é citado por Armando como Sergio Yacoubian, diferentemente de Sandra, que recebe o sobrenome completo), um garoto bonito, inteligente e interessante que aparece em seu consultório, articulado e confuso, e lhe fala sobre uma infelicidade. Uma infelicidade que mal pode ser percebida, no entanto, que Armando acha que ele sabe esconder muito bem.
E então Sergio Y. abandona o tratamento após uma viagem a Nova York.
O livro é narrado arqueologicamente, enquanto Armando vai tentando entender tudo o que aconteceu. Eu acho profundamente emotivo pela maneira como tudo ocorre, pelas escolhas de palavras e pelas metáforas. Eu me comovo. E eu já estava apaixonado pela obra, por Sergio Y., e fiquei profundamente horrorizado quando o seu obituário é publicado, razoavelmente cedo na obra, na qual tudo acontece de forma rápida e introspectiva. A notícia da morte de Sergio Y. aparece pouco depois de Armando ter tido a sensação de que podia dar o caso por encerrado ao saber que Sergio estava feliz em Nova York, e ia abrir um restaurante – mas a notícia o enche de angústia, e ele não pode deixar de sentir que teve alguma participação em meio a tudo isso. Que, de alguma maneira, a culpa fora sua. E ao tentar encontrar informações sobre a sua morte, o seu assassinato, ele descobre a morte de Sandra Yacoubian, em 02 de fevereiro de 2011. E então tudo lhe é revelado: o caso de transexualidade que ele falhou em diagnosticar.
Toda a neura se intensifica dali em diante.
Mas é belíssimo. Eu tenho que dizer que é belíssimo, porque a trajetória de Sergio Y. a Sandra Yacoubian (onde ela se torna completa e feliz) é narrada em uma reconstrução digna que nos mostra a sua eterna busca por felicidade e por ser ela mesma. Com um pé lá no passado de seu avô e o livro de Angelus que o incentivou, tudo o que Sergio queria era ser feliz. Então ele foi a Nova York para morrer silenciosamente e deixar que Sandra vivesse. Quão poético é isso? Dr. Armando, com toda sua necessidade de descobrir a verdade e a sua participação em todo o caso de Sergio/Sandra, acaba em Nova York conversando com a terapeuta de Sandra Yacoubian na América, que lhe reafirma a sua participação no futuro de Sandra e a sua essencialidade para que ela pudesse ter sido feliz como o foi. Ela morreu de forma inconsequente, sem sentido, prematuramente. Mas viveu uma vida intensa e feliz. Talvez, como a mãe de Sandra garante ao psiquiatra no fim do livro, saber que a filha morrera quando estava tão feliz era muito mais reconfortante.
Assim Armando encontra a paz também.
Porque saber que, independente de o que aconteceu e de ela ter morrido prematuramente, o que é algo extremamente triste, ela estava feliz. E isso é o que importa, a felicidade de ser o que você quer ser ou o que você realmente é. Pura e simplesmente. É isso o que Sandra quis e é isso o que Sandra conseguiu. Sorri nervosamente enquanto lia a entrevista de Laurie Clay, pensando na inevitabilidade da vida, no não-dito, no inconsciente. Doeu-me um pouco ler a entrevista do pai de Sergio, com toda sua dicotomia de falar do amor pelo filho e o ódio em paralelo, a vontade de arrancar as roupas do seu corpo quando lhe viu vestido de mulher pela primeira vez, mas o controle de não fazê-lo; a tranquilidade e a paz adquirida ao saber que o filho só foi para Nova York em busca de felicidade e a encontrou. Muito mais prazer me deu ler a entrevista de Tereza, a mãe de Sandra, e poder ver como ela via a filha, e ali, talvez pela primeira vez, eu sentia que não estava mais em busca de respostas sobre a morte de Sandra Yacoubian, ou reproduzindo seus passos em Nova York: eu estava a conhecendo como a garota feliz que ela era.
E é isso o que eu quero guardar para mim: a felicidade de Sandra de ser ela mesma.
“O senhor não chegou a vê-lo, mas, acredite em mim, se a visse, sentiria orgulho”

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