Desventuras em Série, Livro Segundo – A Sala dos Répteis
O retorno do Conde Olaf à vida dos Órfãos Baudelaire.
A vida dos Órfãos Baudelaire é recheada de
desfortúnios. Lemony Snicket faz questão de, o tempo todo, lembrar-nos de como
a vida de Violet, Sunny e Klaus Baudelaire é infeliz e sem qualquer
perspectiva. Com seu humor ácido e duvidoso, o autor nos guia por mais uma desventura dos Baudelaire, quando eles
trocam de tutor pela primeira vez. Depois de todas as desgraças contidas em Mau Começo, no qual os irmãos foram
obrigados a ir morar com o desprezível Conde Olaf, eles são agora transferidos
para o Dr. Montgomery – ou como ele gosta de ser chamado: Tio Monty. É uma
mudança drástica, porque as coisas parecem apresentar algum tipo de esperança
pela primeira vez em muito tempo. Eles estão felizes, têm uma vida interessante
e cheia de possibilidades pela frente, mas é claro que, em se tratando de
Baudelaires, isso não poderia durar muito… então
o Conde Olaf chega fantasiado de Stephano e toda a infelicidade retorna à vida
dos três irmãos, e coisas muito piores do que antes estão prestes a acontecer.
Inclusive porque dar esperança às pessoas e depois
tirá-la é CRUELDADE.
Vamos falar da carta de Lemony Snicket aos
leitores de A Sala dos Répteis:
Caro Leitor,
Se você esperava encontrar uma
história tranquila e alegre, lamento dizer que escolheu o livro errado. A
história pode parecer animadora no início, quando os meninos Baudelaire passam
o tempo em companhia de alguns répteis interessantes e de um tio alto-astral,
mas não se deixem enganar. Se vocês têm uma leve noção da incrível má sorte dos
irmãos Baudelaire, já sabe que, no caso deles, até mesmo acontecimentos
agradáveis acabam sempre em sofrimento e desgraça.
Nas páginas que você tem em mãos,
as três crianças sofrem um acidente de carro, veem-se às voltas com uma
serpente mortífera, um cheiro pavoroso, um facão enorme e o reaparecimento de
uma pessoa que esperavam nunca mais ver.
Infelizmente, é meu dever pôr no
papel esses trágicos episódios. Mas nada impede que você coloque este livro de
volta na estante e procure algo mais leve.
Respeitosamente,
Lemony Snicket
Como
vocês se lembram, eis aqui o peculiar humor macabro de Lemony Snicket. Ele
trabalha com toda uma ironia sem fim para contar os acontecimentos mais
desastrosos possíveis nas vidas de três crianças adoráveis que podiam ter um
futuro brilhante. No entanto, estão presas em desventuras horripilantes e em
acontecimentos nos quais poderiam ter agido de forma diferente e, por isso,
ficarão sem dormir, daqui a muitos anos, pensando em como podiam ter, por
exemplo, salvado a vida do adorável Tio Monty. O estilo de narrativa de Lemony
Snicket preza esse humor duvidoso, e diverte enquanto apavora – porque se você
pensa, de fato, na história por trás de todo o humor negro, é uma história
bastante triste. E isso está bem representado desde o começo, quando os irmãos estão
no carro do Sr. Poe, sendo levados para o seu novo tutor pelo Mau Caminho, um
lugar tão horrível que os campos à sua volta são cinzentos, os frutos de suas
árvores esqueléticas são ácidos e o cheiro terrível de raiz-forte é pungente. Além
do Rio da Amargura, com 90% de lama e uma população de peixes apodrecendo por
falta de oxigênio.
Visual
e desesperançoso.
No
entanto, Lemony Snicket consegue levar as crianças para um lugar agradável, ao
que parece. Tio Monty é um renomado herpetólogo, com uma casa grande e uma
imensa Sala dos Répteis, onde guarda as mais absurdas espécies de cobras –
absurdas mesmo, já que algumas têm duas cabeças e tudo o mais. Algumas coisas
até mais absurdas que isso, mas enfim. Pode parece assustador, a princípio, mas
é mágico. A uma semana de uma deliciosa expedição ao Peru, as crianças se veem
no Paraíso. Ganham seus próprios quartos, que podem arrumar como preferirem e,
ao acordar, descem para a Sala dos Répteis. “Trabalham” durante todo o dia (mas
o trabalho de Violet é lidar com engrenagens e armadilhas; o de Klaus é ler e o
de Sunny é morder!) e param para o jantar, depois do qual vão para o cinema…
poderia ser mais perfeito? Foram alguns poucos dias deliciosos nos quais os
Órfãos Baudelaire se permitiram sentir esperança de que as coisas fossem ficar
boas novamente. Sunny até fez amizade com a Víbora Incrivelmente Mortífera.
Ah,
o nome é inapropriado.
Mas
então, quando eles estão sozinhos em casa (porque o Tio Monty está comprando o
que falta para a expedição), eis que “Stephano” aparece, e Stephano não é
ninguém mais que o próprio Conde Olaf disfarçado. Sem a sobrancelha única, que
agora ele raspou, e com uma barba que deixou crescer, mas inegavelmente ele
mesmo. Sem reação e assustadas, as crianças acabam deixando que ele entre, e
dali em diante é desventura atrás de desventura. Porque embora eles queiram
contar ao Tio Monty a verdade, ele não acredita neles, e mal para de fato para
escutá-los, ansioso que está com a expedição. E o Conde Olaf ainda ameaça os
irmãos com uma faca… e elas são crianças impressionáveis. Assim, quando tudo
TALVEZ vá ficar bem, porque Tio Monty rasga a passagem de Stephano para o Peru,
ele amanhece morto. E é chocante. Os livros de Desventuras em Série trazem, no mínimo, uma morte por livro, mas eu
acredito que nesse caso é quase mais chocante que em Mau Começo. Perder os pais no primeiro livro é terrível, mas em A Sala dos Répteis as crianças VEEM o
cadáver.
Então
é muito mais visual.
De
todo modo, não parece haver esperança, e isso que eles são crianças
excepcionais e inteligentes! Felizmente, a caminho do Porto Enevoado para pegar
o trem, Conde Olaf se coloca em um acidente de carro com o Sr. Poe. UFA! É bizarramente
(e frustrantemente) cômico como o Sr. Poe reage a isso tudo, como não acredita
nas crianças que Stephano é o Conde Olaf, e como Lemony Snicket narra
ironicamente passagens absurdas, como aquela prolongada discussão de como todos
se dividiriam nos carros para ir até a cidade. Desventuras em Série é mesmo tão macabramente irônico. Veja esse
pretenso Dr. Lucafont, que suspeitamente apareceu na casa do Dr. Montgomery
rápido demais para fazer uma “autópsia” condizente com as histórias mentirosas
do Conde Olaf. Quer dizer, a deliciosa e absurda ironia de uma explicação tão ridiculamente
bizarra como “Deve ter saído, mordido o
Dr. Montgomery e em seguido trancou-se de novo”, em relação a uma cobra (!),
ser levada a sério tem tudo a ver com o que acostumamo-nos a ver em Desventuras em Série. É o estilo sarcástico
e absurdo assumido por Lemony Snicket e isso torna a série o que ela é.
É
angustiante? Não posso dizer que não seja.
Mas
isso é Desventuras em Série.
Outras
coisas são levadas a sério por mais absurdas que pareçam, claro… Conde Olaf se
safa em um universo no qual apenas crianças o compreendem. Crianças que não são
levadas a sério. Por isso as crianças precisam agir por elas mesmas e conseguir
PROVAS. Em um belíssimo trabalho em equipe. Começa com uma mentira. Ah, e aí
tem uma passagem que retrata bem o que digo da escrita irônica de Lemony Snicket,
quando ele fala sobre a história do Menino e do Lobo: “A moral da história, é claro, deveria ser: ‘Não more jamais num lugar
onde lobos passeiam à vontade’, mas quem leu para vocês a história
provavelmente terá dito que a moral era que não se deve mentir. Ora, essa é uma
moral absurda, pois tanto vocês como eu sabemos que às vezes mentir não somente
é bom como é necessário”. Assim como era necessário que Sunny mentisse para
distrair “Stephano” e o Sr. Poe na Sala dos Répteis enquanto Violet Baudelaire
buscava provas de que Stephano era, na verdade, o Conde Olaf e tinha matado o
Dr. Montgomery.
Também
adoro essa parte de Lemony Snicket:
Há outra história a respeito de
lobos que provavelmente devem ter contado a vocês e que também é absurda. Estou
falando de Chapeuzinho Vermelho, uma garotinha bastante desagradável que, como
o Menino que deu Alarme contra o Lobo, insistiu em intrometer-se no território
de animais perigosos. Como vocês hão de estar lembrados, o lobo, depois de ser
tratado muito rudemente por Chapeuzinho Vermelho, comeu a avó da menina e
vestiu a roupa da velha como disfarce. Esse é o aspecto mais ridículo da
história, porque mesmo uma garota tão boboca como Chapeuzinho Vermelho saberia
na mesma hora notar a diferença entre a avó e um lobo metido numa camisola e
calçado com chinelos felpudos.
Tudo
isso para explicar porque Klaus Baudelaire não ficou desesperado quando Sunny
se envolveu com a Víbora Incrivelmente Mortífera e começou a gritar, porque ele
a conhecia e sabia que aquele não era um grito de verdade. Os devaneios
hilários de Lemony Snicket reproduzem bem o tom escolhido por ele, além de
aumentar o suspense e serem exemplos realmente muito bons. Mas o Sr. Poe, que não
conhecia Sunny assim tão bem, não reagiu como o Klaus.
Pelo
contrário, entrou em pânico:
“Meu Deus!”, gritou. “Minha
nossa! Em nome de Alá! Por Júpiter e Juno! Maria e José! Edgar Allan Poe! Não toque
nela! Peguem a cobra! Cheguem mais perto! Fuja! Não se mexa! Matem a cobra!
Deixem ela em paz! Deem qualquer comida a ela! Não deixem ela morder a menina! Atraiam
a cobra para ela se afastar! Vem cá, cobrinha! Vem, cobrinha, cobrinhazinha!”
É
hilário. É absurdo. É ridículo. Gostei
da menção a Edgar Allan Poe, porque sinto que Lemony Snicket era fã das
histórias de Edgar Allan Poe quando criança – provavelmente Daniel Handler
também. De todo modo, isso serve para “Stephano” revelar todo seu conhecimento
sobre cobras. Primeira mentira. “Com A-há ela quer dizer A-há!” E enquanto isso
(Lemony Snicket me mataria por isso), Violet Baudelaire está buscando provas,
que é diferente de procurar uma agulha no palheiro, porque ela está procurando qualquer coisa no palheiro. Com sua
inteligência e capacidade de inventar coisas (embora ela mexa em material
elétrico e Lemony Snicket nos lembre, por MAIS DE UMA PÁGINA INTEIRA, com infinitos
“nunca” que nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca,
nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca,
nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca, nunca – e assim por diante –
nunca devemos fazer isso), ela consegue abrir o cadeado da mala do Conde Olaf. E
pronto, é claro. TUDO o que eles poderiam querer estava lá, qualquer prova.
Então
o Conde Olaf é desmascarado.
Assim
como sua tatuagem do olho no tornozelo.
Infelizmente,
o Conde Olaf consegue escapar, mas se não conseguisse nós não teríamos a
sequência dessa maravilhosa série que adoramos. Mas cada um dos personagens foi
BRILHANTE. Assim como o Tio Monty era um herpetólogo brilhante, eles também o foram. Klaus foi brilhante descobrindo informações sobre a Mamba do Mal. Violet foi brilhante recolhendo provas da mala do
Conde Olaf. E Sunny foi brilhante ao
brincar com a Víbora Incrivelmente Mortífera e interpretar tão bem. São com
palavras como essas que Lemony Snicket termina a sua narrativa, e os três
irmãos, unidos, pelo menos têm um ao outro, e sabem que eles são brilhantes. Agora, de volta ao Mau
Caminho, eles não sabem para onde o Sr. Poe os levará, mas acreditam que deve
haver mais desventuras por lá… a Carta ao Editor (que eu sempre AMO) de Lemony
Snicket dá suas dicas. Fala que ele está no que sobrou da casa de Tia
Josephine, e ainda cita a Gruta do “P”… enfim. Agora nos preparamos para O Lago das Sanguessugas.
Para a review de Desventuras em Série: Mau Começo, clique
aqui.
Comentários
Postar um comentário