Desventuras em Série, Livro Terceiro – O Lago das Sanguessugas

[Ilustração de Marco Giorgianni]

“Os Baudelaire tinham uns aos outros”
A perspectiva de um lago infestado de sanguessugas não é nem um pouco aprazível, eu diria – já me parece bastante angustiante quando Tia Josephine fala do lago e como as pessoas nadam nele, mesmo com as sanguessugas, porque elas são, no geral, bem inofensivas e só atacam pequenos peixes… a não ser que você tenha comido a menos de uma hora. Obrigado, Lemony Snicket, agora teremos outros medos de nadar logo depois de comer. De todo modo, eu acho que O Lago das Sanguessugas é um dos melhores livros do início da saga, antes que a história de fato comece a ficar mais instigante com todas as investigações, CSC e tudo o mais… mas sutilmente, Snicket colocou em sua narrativa algumas dicas. Finalmente o Conde Olaf, por exemplo, falou sobre o incêndio criminoso pelo qual é culpado, confirmando aquilo que todo mundo desconfiava: que o incêndio na Mansão dos Baudelaire foi causado por ele! E Klaus testa suas habilidades de investigador ao precisar desvendar um bilhete deixado por Tia Josephine.
E isso faz com que seja um dos meus livros favoritos na série!
Eis a carta de Lemony Snicket aos leitores:

Caro Leitor,

Se você ainda não leu nada sobre os órfãos Baudelaire, é preciso que antes mesmo de começar a primeira frase deste livro fique sabendo o seguinte: Violet, Klaus e Sunny são legais e superinteligentes, mas a vida deles, lamento dizer, está repleta de má sorte e infelicidade. Todas as histórias sobre essas três crianças são uma tristeza e uma verdadeira desgraçada, e a que você tem nas mãos talvez seja a pior de todas.
Se você não tem estômago para engolir uma história que inclui um furacão, uma invenção para sinalizar pedidos de socorro, sanguessugas famintas, caldo frio de peninos, um horrendo vilão e uma boneca chamada Perfeita Fortuna, é provável que se desespere ao ler este livro.
Continuarei a registrar essas histórias trágicas, pois é o que sei fazer. Cabe a você, no entanto, decidir se verdadeiramente será capaz de suportar esta história de horrores.

Respeitosamente,
Lemony Snicket

A terceira desventura dos Órfãos Baudelaire começam com eles sentados no Cais de Dâmocles, em cima de suas malas, talvez com uma vaga esperança de que as coisas possam ser melhores para eles dessa vez… sua nova tutora, Josephine Anwhistle, não vêm buscá-los, no entanto, porque ela sente medo. Desse modo, Violet, Klaus e Sunny Baudelaire sobem sozinhos de táxi o grande morro que os leva à casa de Tia Josephine, e é uma casa perigosamente equilibrada no topo do morro, com estacas que a impedem de cair, supostamente, mas com a aparência de que, a qualquer momento, poderá cair no Lago Lacrimoso lá embaixo. É um pouco apavorante. Mas Lemony Snicket nos avisa: não estamos prestes a ter um monte de aventuras bonitas e divertidas de órfãos inteligentes. Eles são, sim, órfãos inteligentes e adoráveis, mas suas vidas só veem uma desgraça após a outra desde que seus pais morreram em um misterioso incêndio que destruiu sua casa, e agora o Sr. Poe os leva de tutor a tutor enquanto eles são perseguidos pelo Conde Olaf.
Sempre com um final desastroso e traumatizante.
Conhecemos lentamente com o que estamos lidando. A Tia Josephine poderia, talvez, até ser uma boa tutora – mas não o era. Sua biblioteca, o que podia parecer eletrizante, era recheada apenas de livros de gramática, e ela ficava insistentemente os corrigindo nas horas mais inoportunas possíveis, gradualmente fazendo-os (e fazendo-nos) perder a paciência. Bem como seu medo irracional de absolutamente tudo. Do Lago Lacrimoso, por exemplo – embora nesse caso ela tenha um bom motivo, já que seu marido Belo morreu no Lago depois de comer e, 45 minutos depois, ir nada; devorado pelas sanguessugas. Ou de corretores de imóveis! E do fogão! Por isso Snicket nos fala sobre medos racionais e medos irracionais. E os Baudelaire tem um medo de que tudo vá dar errado. Poderia ser irracional, como eles ainda não tinham motivo para isso, mas era racional em se tratando de Órfãos Baudelaire. Afinal de contas, logo em seguida o Conde Olaf apareceu de volta na vida das crianças.
Dessa vez como o Capitão Sham.
Basicamente, o vilão colocou uma venda em um olho, uma perna de pau falsa, e se passou por um empresário que aluga barcos a vela no Cais de Dâmocles. E infelizmente a Tia Josephine cai na sua conversa, para tristeza de Violet: “Pensei que alguém que tem medo até de corretores fosse a última pessoa capaz de fazer amizade com o Conde Olaf, qualquer que fosse o disfarce usado por ele”. E, mais longo que os dois primeiros livros da série, eu gosto da agilidade com que a história acontece – Lemony Snicket tinha muito o que contar sobre esse episódio. Depressa o plano do Conde Olaf parece dar certo: supostamente, a Tia Josephine pula da janela de sua biblioteca e deixa um bilhete suicida em que diz que seu desejo é que o Capitão Sham cuide das crianças dali em diante. Mas alguma coisa estranha chama a atenção das crianças no bilhete, e para “inventar algum tempo”, Violet Baudelaire tem a ideia de que eles provoquem uma reação alérgica a si mesmos. Nada muito grave, mas o suficiente para que eles tenham algumas horas sozinhos.
E funciona!
Gosto muito do humor de Lemony Snicket. É tão bizarro e no meio de acontecimentos tão deprimentes e cruéis, que o humor não vem para nos fazer dar risadas escandalosas, mas marca a leitura de Desventuras em Série. Assim, enquanto Klaus tenta descobrir o que lhe chamou tanto a atenção no bilhete de Tia Josephine, ele fala com uma série de “blá blá blá” que é absolutamente hilário! Mas a eficiência das crianças também é ADMIRÁVEL. Afinal de contas, os erros gramaticais do bilhete, que Tia Josephine JAMAIS cometeria, os levam a uma mensagem: “PGRUTA”. Assim, examinando o Atlas do Lago Lacrimoso, eles descobrem que tem que ir para a Gruta do P. Mas como o Furacão Hermano acabou de começar, primeiro eles precisam fugir de uma casa desmoronando perigosamente e caindo dentro do Lago. Bem, a melhor maneira de, quem sabe, conseguir ajuda, é salvar a Tia Josephine, resgatando-a lá na Gruta do P. E como fazê-lo?
ROUBANDO UM BARCO.
Veja a doce ironia de Lemony Snicket ao falar sobre ser desculpável ou não roubar:

“Roubar não é desculpável, por exemplo, se a pessoa está num museu, resolve que um determinado quadro ficaria melhor em sua casa e simplesmente leva o quadro para casa. Mas se a pessoa está morrendo de fome e não tem outro meio de conseguir dinheiro, é desculpável que ela leve o quadro para casa e o coma”.

Adoro esse humor duvidoso de Desventuras em Série.
Então, é no meio do Furacão Hermano, em um barco roubado do Capitão Sham, que os Órfãos Baudelaire se jogam no Lago Lacrimoso para uma das “aventuras” mais perigosas de suas vidas – para encontrar a amedrontada Tia Josephine na Gruta do P. E é um lindo trabalho em equipe. Foi Klaus quem decifrou a mensagem. Foi Violet quem manejou o barco a vela. Foi Sunny quem roubou as chaves. Três jovens brilhantes e astutos. Tia Josephine, por outro lado, é uma personagem triste, decepcionante. Você espera que ela possa ser uma boa tutora (ou não, em se tratando dos Baudelaire), mas ela é a representação caricaturada de uma personalidade ridícula e vergonhosa. Revoltante. De alguém que está mais preocupada com a gramática do que com qualquer outra coisa, fazendo discursos inapropriados nos piores momentos possíveis; alguém que está tão absurdamente prisioneira de seus próprios medos que deixou totalmente de viver e quase de se importar com os outros.
Assustadoramente entregue.

“Tinha um medo tão grande de tudo, que era impossível para ela gostar de qualquer coisa”

Assim, Josephine Anwhistle tem um dos finais mais tristes e traumatizantes de todos os finais tristes e traumatizantes de tutores dos Órfãos Baudelaire. Lemony Snicket coloca, em todos os seus livros, no mínimo uma morte significativa. Quem não conhece Desventuras em Série tão bem, talvez, se aventure a pensar que, embora Tia Josephine esteja morrendo de medo naquele barco, ela vai se salvar. Mas por causa de uma banana que ela comeu pouco antes de ser resgatada, as sanguessugas famintas atacam perigosamente o barco a vela das crianças, e é DESESPERADOR. E mesmo a genialidade de uma invenção pensada às pressas por Violet não é o suficiente para salvá-los, porque quem vê o pedido de socorro improvisado é o próprio Capitão Sham… e o que ele faz, além de “resgatar as crianças”? Ele joga a Tia Josephine no Lago Lacrimoso para que seja devorada pelas sanguessugas que a perseguiram, e é uma cena bastante forte. Foi diferente com o Tio Monty, porque os irmãos não viram acontecer. Com Tia Josephine foi TERRÍVEL.
Indícios da morte só seriam encontrados quando as crianças estivessem no internato.
É uma história realmente muito triste, talvez a mais triste da história dos Baudelaire – porque não houve um único momento de felicidade, e o assassinato foi cruel. Ao menos Sunny, mordendo a perna de pau falsa do “Capitão Sham”, revela a identidade do Conde Olaf e impede que o Sr. Poe os deixe com ele. Ainda assim… o que isso tudo significou? O autor se pergunta sobre a “moral da história” nas últimas páginas do livro:

“A moral de ‘Os três ursinhos’, por exemplo, é: ‘Jamais forcem a entrada da casa de outra pessoa’. A moral de ‘Branca de Neve’ é: ‘Jamais comam maçãs’. A moral da Primeira Guerra Mundial é: ‘Jamais assassinem o arquiduque Ferdinando’. Mas Violet, Klaus e Sunny, sentados no cais e olhando o sol se erguer sobre o Lago Lacrimoso, refletiram um bom tempo em qual seria exatamente a moral do período que passaram com tia Josephine”.

Ilustração feita por Marco Giorgianni
e disponível em seu DeviantArt
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E, quem diria, eles chegam a uma conclusão. Com um final muito parecido com aquele de A Sala dos Répteis (em que eles estavam comentando entre eles como cada um tinha sido brilhante), no fim de O Lago das Sanguessugas as crianças estão sentadas, novamente no Cais de Dâmocles, se perguntando o significado de suas vidas. E elas se sentem agradecidas, uns pelos outros. Agradecem a sagacidade de cada um, porque TODOS fizeram muitas coisas que os ajudaram a fugir do Conde Olaf mais uma vez. E, molhados e tristes, de alguma maneira um sorriso aparece no rosto dos Órfãos Baudelaire porque, diferente de Tia Josephine, que vivia sozinha e com medo no topo daquele morro em uma casa que ameaçava cair no Lago Lacrimoso, os Órfãos Baudelaire, ao menos, têm uns aos outros, e isso já é alguma coisa. E esse é um dos motivos que me fazem gostar tanto dos livros. Porque eles são crianças inteligentes e amáveis, e o sentimento que têm um pelo outro é maior que qualquer desventuras pelas quais eles sejam obrigados a passar…



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P.S.: A imagem usada para o topo dessa postagem trata-se de uma ilustração feita por Marco Giorgianni e postado em seu DeviantArt, que você pode visitar clicando aqui. O link para a imagem está aqui. Trata-se de um trabalho de ilustração de Marco Giorgianni para todos os livros da série Desventuras em Série.


GIORGIANNI, Marco. A Series of Unfortunate Events – The Wide Window. Disponível em: http://marcogiorgianni.deviantart.com/art/A-series-of-unfortunate-events-The-wide-window-443820476 Acessado em: 22 de dez. 2016.

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