Uma Dobra no Tempo (Madeleine L’Engle)



Era uma noite escura e tempestuosa; a jovem Meg Murry e seu irmão mais novo, Charles Wallace, descem para fazer um lanche tardio quando recebem a visita de uma figura muito peculiar.
“Noites loucas são a minha glória”, diz a estranha misteriosa. “Foi só uma lufada que me pegou de jeito e me tirou da rota. Descansarei um pouco e seguirei meu rumo. Por falar em rumos, meu doce, saiba que o tesserato existe, sim”.
O que seria um tesserato? O pai de Meg bem andava experimentando com a quinta dimensão quando desapareceu misteriosamente… Agora, com a ajuda de três criaturas muito peculiares, chegou o momento de Meg, seu amigo Calvin e seu irmão Charles Wallace partirem em uma jornada para resgatá-lo. Uma jornada perigosa pelo tempo e o espaço.

Publicado pela primeira vez em 1962, “Uma Dobra no Tempo” segue sendo um verdadeiro clássico da fantasia e da ficção científica, falando a gerações. Com uma temática forte capaz de envolver uma gama de reflexões e momentos profundamente filosóficos, o livro é empolgante, carismático e tem personalidade. Adoro a maneira como, por vezes, tudo parece um tanto quanto surreal. A bizarrice exalta a “estranheza” com que encaramos todas essas possibilidades quando, na verdade, nos revela que sempre sonhamos com isso, e a variedade de vezes que percebemos o assunto das “dobras no tempo” serem exploradas em nossas mídias de entretenimento nos faz ver o quanto somos fascinados pelos mistérios do universo! No fundo, Madeleine L’Engle está criando uma variedade de outros mundos para explorar mais a fundo o nosso próprio, por associação.
É isso o que ela faz ao falar sobre a Coisa Escura, que cobre a Terra e tenta se apossar dela, como já se apossou de planetas como Camazotz. Também é totalmente fascinante como Meg conhece um outro planeta, que inicialmente não chama a atenção por ser basicamente cinza e marrom, mas que esconde uma variedade de maravilhas inimagináveis, mas apenas “inimagináveis” porque somos incrivelmente limitados e não conseguimos absorver toda a grandeza da “verdade” das coisas. Meg protagoniza um dos melhores diálogos do livro com a “Tia Criatura” quando tenta lhe explicar, sem sucesso, o que é a visão. Também aproveito para comentar a maneira como Madeleine L’Engle nomeia os seus personagens, especialmente as três “Sras. Q”, que são a Sra. Quequeé, a Sra. Quem e a Sra. Qual, cujas “verdadeiras identidades” são um mistério digno de teorias…
Parece-me seguro dizer que elas são “anjos guardiões” que combatem a Escuridão.
Acima de tudo, eu achei o livro poético. A forma peculiar de se contar a história me fascinou e me envolveu. A construção é detalhada, por vezes divertida, mas sempre muito pungente. Ainda que poética, Madeleine é extremamente direta, e ela nos leva a pensar e por vezes, ainda que em passagens curtíssimas, nos causa um desconforto e uma angústia perturbadora. Adoro como ela apresenta as mulheres. Primeiro a Sra. Quequeé, naquela misteriosa noite de tempestade, como uma andarilha que rouba lençóis, e é quando primeiro ouvimos falar do tesserato. Depois, a Sra. Quem, que Meg e Charles Wallace encontram na casa no dia em que “conhecem” Calvin. Por fim, a Sra. Qual, que conhecem na floresta no momento em que tesseratam pela primeira vez até um planeta chamado Uriel, o terceiro da Estrela Malak, na Nebulosa Espiral Messier 101.
Charles Wallace é um garoto especial. Muito pequeno e calado, o garotinho tem percepções muito mais aguçadas que a maioria das pessoas, e é um verdadeiro prodígio. O livro indica, constantemente, que ele é diferente dos demais, de algum modo. Calvin, provavelmente, também é como Charles Wallace, apenas Meg que “não é como eles”, embora tampouco seja uma humana normal. Eu gosto de como, nesses casos, a autora trabalha com sutileza, sem aprofundar-se nos detalhes, mas nos fazendo entender o que é que torna as crianças uma diferente da outra, e cada uma é apaixonante à sua própria maneira. Assim como as senhoras… a Sra. Quequeé, em Uriel, assume uma nova forma majestosa e praticamente inexplicável, mas que enche o coração e os olhos. Lá, nesse outro mundo, ela leva as crianças em um voo mágico até a Coisa Escura…
A força contra a qual seu pai está lutando.
Madeleine L’Engle é extremamente eficaz ao explicitar a perturbação que é olhar para essa “Coisa Escura”, e é essa mesma Coisa Escura que está em volta da Terra e a Médium Contente lhes mostra isso numa bola de cristal quando as senhoras levam Charles, Meg e Calvin até um outro planeta, depois de explicar-lhes sobre as dobras no tempo e a viagem pela quinta dimensão. [Detalhe para a rápida e angustiante cena no planetinha bidimensional!] Quando vemos essa força (a “Coisa Escura”, o “Mal”, o “Poder das Trevas”) ao redor da Terra, lá há alguns anos, tornando tudo tão conturbado, as senhoras conversam com as crianças sobre os “Guerreiros da Terra”, e nomes muito interessantes são citados nessa passagem, de pessoas que lutaram contra isso: Jesus, Leonardo da Vinci, Shakespeare, Bach, Gandhi, Buda, Beethoven, São Francisco…
E por uma dobra, passando através da Coisa Escura, as senhoras levam as crianças até Camazotz, onde o Pai de Meg e Charles Wallace deve estar, mas o planeta dominado pelas forças do mal é um lugar onde as senhoras não podem acompanhá-los. Por isso, pela primeira vez, os três estão sozinhos. Antes de iniciarem sua jornada, no entanto, as mulheres lhes dão dádivas: a Sra. Quequeé dá a Calvin a capacidade de comunicar-se, a Meg seus defeitos e a Charles a resiliência da infância; a Sra. Quem dá a Charles um conselho (“Lembre-se de que não sabe de tudo”) e a Meg seus óculos; por fim, a Sra. Qual dá a todos instruções, que é descer à cidade, FICAR JUNTOS, e “não deixar que os separem”. E a chegada a Camazotz já é perfeitamente perturbadora, com aquele vilarejo absolutamente creepy, com as casas idênticas, as flores idênticas…
Tudo.

“Era mesmo. A corda de pular batia no asfalto no exato instante da bola. Quando a corda passava por cima da cabeça da criança pulando, a criança com a bola pegava a bola. A corda descia. A bola caía. Repetidamente. Sobe. Desce. Tudo no mesmo ritmo. Tudo idêntico. Tal como as casas. Tal como as ruas. Tal como as flores.
Então, as portas de todas as casas se abriram simultaneamente e delas saíram mulheres como uma fileira de bonequinhas de papel. As estampas dos vestidos eram diferentes, mas todas aparentavam ser a mesma mulher. Cada uma parou no degrau de sua casa. Cada uma bateu palmas. Cada criança com bola pegou sua bola. Cada criança com corda dobrou sua corda. Cada criança virou-se e caminhou para sua casa. As portas fecharam-se com um estalo uníssono”
(L’ENGLE, 2017, p. 106)

Calafrios.
Eu ainda acho FASCINANTE a capacidade de um autor de manipular tão magistralmente a linguagem para descrever um momento com tamanha perfeição. Para meu desespero, ao ler essas palavras de Madeleine L’Engle, eu consigo imaginar exatamente a cena em minha mente, e é tão desesperador que dá vontade de sair correndo de Camazotz o mais depressa possível. É macabro, é cruel, não é natural. Tudo em Camazotz é assustadoramente calculado, preciso, IDÊNTICO. O entregador de jornais, por exemplo. Tudo frio e automatizado, excluindo a subjetividade individualizante do ser humano, essencial. Quando Charles Wallace, Calvin e Meg entram na Central CENTRAL, mais frieza, mais repetição, e eu sinto uma vibe de ficção científica clássica aqui. E nesse prédio, com o ameaçador e nada confiável “Homem dos Olhos Vermelhos”, Charles Wallace sucumbe à sua própria soberba…
E se perde.

“Meg, você tem que parar de relutar e ficar tranquila. Relaxe e seja feliz. Ah, Meg, se você relaxar, vai perceber que todos os nossos problemas acabaram. Você não entende o lugar maravilhoso em que está. Veja que, neste planeta, tudo está em perfeita ordem porque todos aprenderam a ser tranquilos, a ceder, a se sujeitar. Tudo que você precisa fazer, minha cara irmã, é olhar com calma e firmeza nos olhos de nosso bom amigo que ele vai dominá-la tal como me dominou”
(L’ENGLE, 2017, p. 137-138)

Charles Wallace, o fofíssimo e inteligente Charles Wallace, outrora uma criança tão doce e cuidadosa, agora uma marionete fria e sem vida nas mãos de um mundo perverso e cruel. Um peão manipulado por “AQUELE”. A passagem é fortíssima, e mostra essa coisa perturbadora de “serem todos iguais”, onde não há diferença e, supostamente, infelicidade. Mas tudo é tão macabro, tão estranho, tão MENTIROSO. Calvin, como lhe foi dado o dom da comunicação, tenta se comunicar com o pequeno Charles, sem sucesso, e ele se tornou um sádico assustador, com risadas macabras e comentários como “Em Camazotz, somos todos felizes porque somos todos iguais. Diferenças geram problemas. Você sabe bem disso, não sabe, cara irmã?” (L’ENGLE, 2017, p. 142). Ali não existe individualidade, e isso é tratado com uma naturalidade deveras assustadora.
Dominado por AQUELE, que também domina todo o mundo de Camazotz, Charles Wallace leva Meg e Calvin até AQUELE, depois que Meg consegue usar os óculos da Sra. Quem para salvar o Pai. Infelizmente, diferente do que ela esperava, encontrar o Pai não resolve todos os seus problemas, e eles precisam enfrentar um assustador cérebro gigante sobre um tablado, pulsante, incorpóreo e repugnante. Meg luta com a sua teimosia contra o ataque d’AQUELE que tenta dominar sua mente como fez com Charles Wallace, e ela resiste por muito tempo, até que seja impossível continuar e Calvin pede ao Sr. Murry, Pai de Meg, que eles tesseratem. Então, Meg “se perdeu na agonia da dor que finalmente se desfez na escuridão da inconsciência absoluta” (L’ENGLE, 2017, p. 163). O problema é que o Pai tesserata Calvin e Meg para fora de Camazotz…
…mas Charles Wallace fica para trás.
Era arriscado demais trazê-lo junto.
A viagem com o tesserato e a inexperiência assustadora do Sr. Murry deixa Meg desacordada por um bom tempo, e depois incapaz de se mover, porque a Coisa Escura quase a traga. Quando finalmente acorda, Meg está FURIOSA porque o Pai deixou Charles Wallace para trás, os levou para um lugar desconhecido e ela não sabe se um dia voltará a ver a Mãe e os gêmeos… esse “lugar desconhecido”, no entanto, se mostra UM DOS LUGARES MAIS BELOS E MÁGICOS DO UNIVERSO. Ali, três criaturas a princípio estranhas recebem os viajantes, e quando Meg é acolhida por uma criatura cheia de pelos e tentáculos, ela sente-se inundada de calor novamente, depois do enregelante frio que a Coisa Escura impôs sobre ela, e ela nunca antes se sentiu tão aconchegada. Então, sem fala como a nossa, mas inteligíveis, as Criaturas dizem que precisam levar a criança.
Talvez uma das maiores e melhores características do livro de Madeleine L’Engle, mais do que brincar com essa ciência sonhada e esses experimentos, seja construir esses outros universos tão fascinantes. Criaturas inicialmente tão estranhas ganham os nossos corações em questão de páginas, e eu adorei como uma das Criaturas e Meg conversam curiosamente sobre o escuro, a luz, as estrelas, e aqui L’Engle pode introduzir toda uma série de passagens memoráveis e profundamente poéticas, como quando questiona a questão da necessidade de vermos que nos priva, talvez, de conhecermos as pessoas e as coisas. A Criatura diz: Não sabemos, como você diz, da aparência das coisas. Sabemos como as coisas são. Imagino que seja muito limitante este ver (L’ENGLE, 2017, p. 184). Ali eu precisei parar para marcar corações em minhas anotações…
Uma de minhas passagens favoritas.
Ali, tudo é extremamente filosófico, belo e aberto a leituras e discussões. Penso no quanto somos limitados, como as coisas são peculiares, mutáveis e às vezes profundamente banais. Como a perspectiva é importante. Como valorizamos algo e o tratamos como essencial quando na verdade é apenas a pequenez de nossa ignorância que o torna assim tão importante. A palavra é “limitação”, e senti-me pequeno lendo esse livro e pensando no quanto eu mesmo sou risível e, perante tantas coisas, insignificante. Sabe como às vezes nos sentimos olhando para o céu e contemplando a imensidão desconhecida do Universo e quantidade de coisas que não sabemos? Senti-me assim, por vezes, durante a leitura de “Uma Dobra no Tempo”. E isso tudo, de algum modo, se resume em uma frase do livro: Como explicar a visão em um mundo onde ninguém nunca enxergou e onde não há necessidade de olhos?
Genial!
<3
Em outra passagem comovente do livro, a autora aprofunda a relação entre Meg e aquela que carinhosamente ela nomeia “Tia Criatura”, e tudo parece tão intenso nessa experiência e nesse novo mundo que o AMOR que elas sentem uma pela outra parece totalmente compreensível, embora quiçá rápido. Nós já amamos a Tia Criatura daquele modo, e talvez quiséssemos estar no lugar de Meg, sentindo os braços aconchegantes, ouvindo a “canção” que não era apenas uma canção. Tudo é grandioso, e ao mesmo tempo simples. Poético. Orgânico. Uma DELÍCIA de capítulo! No entanto, Meg não pode ficar ali para sempre… algo precisa ser feito sobre Charles Wallace, que ficou para trás em Camazotz. Por isso, ela tenta explicar às Criaturas sobre as Sras. Q, mas sem sucesso, remarcando a impressionante incapacidade deles de explicar o que aparentemente sabem.
Nossa impressionante incapacidade.
As coisas ficam mais claras quando as Sras. Q reaparecem. Muito mais duras, mas também mais claras. Meg é levada a entender que apenas ela pode ir até Camazotz e tentar resgatar o irmão, porque é ela que o conhece há mais tempo. Infelizmente, esse retorno a Camazotz é breve e dura umas 10 páginas, no máximo, dando, talvez, a impressão de que tudo foi terminado abruptamente, mas a mensagem é muito clara: Meg tem algo que Aquele não tem, e é o AMOR, e o amor dela por Charles Wallace, e do irmãozinho por ela, pode vencer qualquer coisa. Pode fazê-los se livrar d’AQUELE e levá-los de volta para casa, reencontrar a Mãe, dessa vez com a companhia do Pai. É um fim singelo e emocionante, e eu fico curioso para saber o que Madeleine L’Engle fez nos outros livros da série, porque certamente há muito o que explorar nesse Universo que ela criou!


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L’ENGLE, Madeleine. Uma Dobra no Tempo. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2017.



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