Lisbela e o Prisioneiro (2003)


“Que tipo de história vai ser?”

“Comédia romântica com aventura. Tem um mocinho namorador que nunca se apaixonou por ninguém até conhecer a mocinha. Tem a mocinha que vai sofrer bem muito porque o amor do mocinho é cheio de problemas. Tem um bandido que só quer saber de matar o mocinho ou de ficar com a mocinha ou as duas coisas. Tem uma mulher que também quer o mocinho, mas ele não quer nada com ela. E tem também mais umas personagens que vão ficar fazendo graça pra animar a história. Uns vão terminar quase tão bem quanto o mocinho e a mocinha e outros quase tão mal quanto o bandido conforme eles ajudem ou atrapalhem o romance"

“Você já viu?”

“Não… mas é sempre assim”

“Qual é a graça?”

“A graça não é saber o que acontece. É saber como acontece e quando acontece. A gente vai conhecer um monte de pessoas novas, um monte de problemas que a gente não pode resolver, que só eles podem. Vamo ver como… e quando. Está começando”

 

“Lisbela e o Prisioneiro” é um dos melhores filmes que eu já vi na vida. Protagonizado por Débora Falabella e Selton Mello, o filme é uma comédia romântica que conta a história de uma mocinha apaixonada por cinema que conhece um trambiqueiro mulherengo que não conhecera o amor antes de conhecê-la, e os dois se apaixonam e fazem de tudo para ficarem juntos. O filme é divertido e cheio de metalinguagem e ocasionais quebras da quarta parede, o que eu acho sensacional, a começar por aquela cena da Lisbela na sala de cinema, contando ao noivo tudinho o que vai acontecer no filme (que é tanto o que ela vai assistir quanto o que nós vamos assistir), completamente apaixonada e empolgada, falando sobre como o que importa não é o que vai acontecer, mas como vai acontecer. A cena é extremamente poética, e sempre coloca um sorriso no meu rosto.

O sorriso de Débora Falabella é tão sincero, tão fofo, os olhos brilham… e ela nos contagia.

A história foi originalmente escrita por Osman Lins como peça de teatro, em 1964, e a adaptação cinematográfica é dirigida por Guel Arraes, mesmo diretor que, poucos anos antes, nos trouxera o maravilhoso “O Auto da Compadecida”. Inclusive, coloco “Lisbela e o Prisioneiro” no mesmo nível de perfeição de “O Auto da Compadecida”. Ambos são tesouros do nosso cinema e cultura nacional, obras inteligentes e perspicazes que conseguem sempre nos divertir e nos emocionar, e cada uma ao seu estilo. “Lisbela e o Prisioneiro” também retrata o nordeste, mas brinca constantemente com a paixão que Lisbela sente pelo cinema, e um dos grandes marcos do filme é vê-la sentada naquela poltrona, reagindo a tudo intensamente e prevendo o que vai acontecer, enquanto a história do nosso filme é sempre um paralelo com o filme seriado “americano” que Lisbela está assistindo.

O filme nos prende em diálogos incríveis e situações bizarras e divertidas. Lisbela é apresentada durante várias noites enquanto assiste aos filmes que tanto ama com um sorriso no rosto e uma compreensão absurda. Leléu, por sua vez, é apresentado peregrinando de cidade a cidade, interpretando personagens em cada cidade que passa, dando um jeito de conseguir dinheiro e dormindo com várias mulheres. Lisbela é doce e sonhadora, Leléu é selvagem e prático, mas ambos são capazes de se arriscar pelo que querem… uma das falas de Lisbela de que mais gosto é quando ela diz que a próxima parte é a melhor de todas, porque “é quando o mocinho e a mocinha se conhecem”, e quando o seu noivo pergunta “como ela sabe disso”, ela diz que é simples, porque “já mostraram o mocinho, já mostraram a mocinha, agora falta mostrar os dois juntos”.

E é quando Lisbela e Leléu se conhecem… Leléu chega à cidade de Lisbela fugindo de um tal Frederico Evandro, marido de Inaura – um matador de aluguel que agora está o caçando para matar pela primeira vez sem receber nenhum dinheiro em troca. Lisbela, por sua vez, está andando pelo parque de diversões, sempre emocionada com tudo (eu adoro a maneira como Lisbela vê a vida, como aquele sorriso não sai do seu rosto!), e chega ao espetáculo da Monga, comandado por Leléu. É um primeiro encontro inusitado e incrível, porque quando a Monga se “transforma” no macaco e quebra a jaula, todo mundo sai correndo, menos Lisbela que, como no filme que assistiu no cinema, olha nos olhos do macaco e vê que ele não é mau… então, ela refaz a cena do cinema, interpretando o papel da mocinha, e os destinos de Leléu e Lisbela estão selados naquele olhar.

O primeiro encontro deles é PERFEITO (adoro toda a sequência do Leléu explicando para Lisbela como ele faz a Monga se transformar no macaco), e tem mesmo todo um tom teatral, poético e romântico que faz com que compremos essa paixão desde o primeiro instante… e é como Lisbela adverte em uma das sessões de cinema a que comparece: quando tudo está tão bom assim, é porque vai desandar de vez logo, logo. Lisbela termina seu noivado com Douglas, que acaba indo atrás de um matador de aluguel para dar cabo de Leléu, e o tal matador é justamente Frederico Evandro – que já estava na cidade para matá-lo de qualquer maneira. Leléu, por sua vez, quer viver seu romance com Lisbela, mas está todo enrolado com Inaura, que o seguiu até ali, e com o próprio Frederico Evandro que finalmente sabe onde ele está e vai matá-lo a qualquer momento.

Então, ele resolve pedir ajuda a um conhecido, um homem que ele corajosamente salvou de um boi no meio das ruas de Pernambuco, um homem que se voluntariou para “dar cabo de um inimigo seu” – é claro que ele não imagina que esse “amigo” é o próprio Frederico Evandro. Eu adoro as confusões de “Lisbela e o Prisioneiro”, e como tudo o que Lisbela anunciou no início do filme de fato acontece, como o vilão que quer matar o mocinho, a outra mulher que também quer ficar com o mocinho, mas ele não gosta dela, e a mocinha, que sofre “bem muito” porque o amor do mocinho é cheio de problemas… no fim, Lisbela pede que o pai prenda Leléu, não porque realmente acredite que ele merece estar na cadeia, mas porque ali ele estará seguro e Frederico Evandro não poderá matá-lo. No dia do seu casamento com Douglas, Lisbela vai à prisão visitar Leléu e eles compartilham a cena mais romântica e mais bela do filme inteiro.

“Lisbela e o Prisioneiro” é um grande marco, certamente. Eu dei altas gargalhadas com várias sequências divertidas do filme (o Leléu convertendo o Cabo Citonho e o casando, por exemplo, como parte de seu plano para fugir da cadeia, ou ele gritando “Tem pressa não, Inaura!”), também chorei com momentos mais emocionantes e passei o tempo todo fascinado pela maneira como a história foi escrita, pelo tom inegavelmente poético que era mais escancarado quando os personagens ocasionalmente rimavam (que delícia aos ouvidos!), mas que estava presente durante toda a obra, independente de rima. No fim, Leléu foge da cadeia com a ajuda de Inaura, antes que Frederico Evandro o encontre, mas diz a Inaura que não pode ficar com ela, porque ama Lisbela, então ele retorna para a cidade, para que possa interromper o casamento dela.

Adoro o fato de que, no fim, é Lisbela quem tem que se impor e dizer que não vai casar.

QUE CENA LINDA.

A sequência final é um divertidíssimo clímax que conta com Frederico Evandro tentando matar Leléu, e eu achei impossível não pensar no Chicó com o Selton Mello ajoelhado ali. É absurdo e exagerado e mostrado como uma cena de um dos filmes de Lisbela, e é uma das melhores sequências do cinema. Na primeira vez que vemos a cena, pensamos que Frederico Evandro de fato atirou. Depois, o narrador retorna ao “capítulo anterior”, mostrando que antes que ele pudesse atirar, Lisbela supostamente atirou em Frederico Evandro, e então ela e Leléu precisam fugir, para que ela não seja condenada por esse crime. Por fim, retornamos uma terceira vez (e eu adoro como o Leléu quebra a quarta parede com o “De novo?”), com uma jogada de câmera dramática e divertida, mostrando que, antes que Lisbela atirasse, Inaura atirou matando Frederico Evandro.

Mesmo com Lisbela sendo inocente na morte de Frederico Evandro, ela diz ao pai que quer fugir de qualquer modo, quer ir embora com Leléu e viver esse grande amor, e é a coisa mais linda do mundo. O filme é um máximo, do início ao fim, e eu gosto das pitadinhas extras que ele dá… o filme poderia ter acabado com o carro com Leléu e Lisbela se afastando, mas Lisbela pede que ele “espere um pouquinho” – afinal de contas, assim como ela teve aquela fala PERFEITA no início do filme, contando o que ia acontecer, ela também precisa encerrar o filme de maneira igualmente perfeita, e é aquilo que, para mim, coroa de vez “Lisbela e o Prisioneiro” como um dos melhores filmes já feitos. A maneira como vemos, pela última vez, essa Lisbela apaixonada, feliz e entendida de cinema, olhando para a câmera e falando diretamente ao espectador, uma última mensagem:

 

“É que o melhor do cinema é o jeito que termina”

“E como é isso, hein?”

“Adivinha”

“Com todo mundo olhando?”

“É só no começo… depois o filme acaba”

“Então tá bom da gente se apressar, porque o povo já entendeu que tá acabando e é capaz de começar a sair sem prestar mais atenção na gente”

“É… mas talvez nessa sala tenha pelo menos um casal apaixonado que vai assistir até o finalzinho. ‘Memo’ depois do filme acabar, eles vão ficar parados um tempão, até o cinema esvaziar todinho… e aí vão se mexendo devagar, como se estivessem acordando, depois de sonhar com a história da gente”

“Tomara que eles tenham gostado”

 

Então, os créditos mostram um cinema se esvaziando, com um casal que não se mexe até a sala do cinema estar vazia, como Lisbela previu ou esperava que acontecesse… e quando esse último casal finalmente começa a se mexer, “como se estivessem acordando”, vemos que esse casal é justamente eles: Leléu e Lisbela, deixando a sessão de cinema. Muito antes de cenas pós-créditos serem um sucesso, esse momento é uma espécie de “cena pós-crédito”, e uma das melhores já feitas, porque tem tudo a ver com o tom romântico e metalinguístico de “Lisbela e o Prisioneiro” e sempre me emociona. Agora mesmo, enquanto escrevo essas palavras, meus olhos estão cheios de lágrimas. Um filme maravilhoso para ver e rever quantas vezes forem possíveis, e guardar com todo o carinho no coração… para sempre.

 

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