O Menino do Dedo Verde (Maurice Druon)

“As flores não deixam o mal ir adiante”

“O Menino do Dedo Verde” é de longe um dos livros mais belos que eu já li na vida… de escrita fluída e envolvente, a história nos apresenta um garotinho fofo, inocente e muito inteligente que descobre ter o polegar verde – e o que isso significa. A história é das mais bonitas já escritas, e Maurice Druon nos guia por ela com uma narrativa que lembra a inocência da infância e joga olhares puros de uma criança sobre “os problemas dos adultos”, a maioria criado pelos próprios adultos, nos tornando reflexivos. Mais de uma vez tive que parar a leitura para sorrir ou para apenas apreciar alguma fala de Tistu, algum ensinamento do Sr. Bigode, ou a escrita quase lírica de Maurice Druon, que parece estar escrevendo uma grande poesia… “O Menino do Dedo Verde” nos encanta e nos surpreende a cada virada de página, e nos pega em cheio em seus últimos parágrafos.

Terminei o livro arrepiado e com os olhos cheios de lágrimas.

Escrito em 1957, “O Menino do Dedo Verde” encanta leitores há mais de 60 anos – eu me lembro de ter lido o livro na infância, e embora pouco me lembrasse dos detalhes da trama, a grande revelação do final continuava bem viva em minha memória, e o sentimento que o livro traz também. Em notas da edição brasileira, o livro é associado a “O Pequeno Príncipe”, e realmente compartilha com ele a mesma força, a mesma beleza e a mesma importância… é daqueles livros que eu acho que todo mundo deveria ler. E eu acho engraçado como ele é classificado como um “livro infantil”, quando ele parece uma lição tão valiosa para qualquer adulto que o encontrar, e o próprio autor fala lindamente sobre isso no prefácio – e, de fato, os melhores chamados “livros infantis” são aqueles que não são chamativos apenas para crianças, mas que amamos em qualquer fase de nossa vida.

A escrita nos envolve desde as primeiras páginas, e percebemos a complexidade da escrita que paradoxalmente é leve e simples, mas detentora de uma profundidade assustadora. É poético, é singelo, é tocante… é belo e reconfortante. O livro começa nos apresentando Tistu quando ele está sendo batizado, e aqui o narrador fala sobre as ideias pré-fabricadas dos adultos, o que eu acho sensacional – coisas que eles acreditam que as crianças gostam, coisas que não fazem sentido e se perpetuam porque “sempre foi assim” e assim por diante… a questão toda do nome, por exemplo. Ele não é batizado Tistu, e embora ninguém entenda seus protestos, ele acaba sendo chamado apenas assim: “Tistu”. Os pais ele chama de “Sr. Papai” e “Dona Mamãe”, o que eu acho genial, e todos os nomes dados aos personagens e aos lugares são representações precisas da maneira como a criança vê o mundo…

E seria tudo tão mais simples e mais bonito se víssemos como elas.

Tistu mora na Casa-Que-Brilha, em Mirapólvora, um lugar quase que comandado pelo Sr. Papai e sua fábrica de canhões, e é brilhante como o livro joga essa informação e aos poucos vai desenvolvendo o personagem de Tistu, até que chegue o momento em que ele lute contra tudo isso e, como os melhores personagens da ficção (penso em “Pollyanna”, de Eleanor H. Porter, nesse momento, na “Anne de Green Gables”, de L. M. Montgomery ou no próprio “Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry nesse momento), transforme o mundo ao seu redor. Tudo começa com a escola, e a maneira como ela parece muito chata para ele – e Tistu pega no sono toda vez, mesmo sem querer. Então, expulso da escola, os pais precisam pensar num “novo sistema de ensino” para ele, e é assim que ele acaba passeando pela cidade e “aprendendo com o mundo”.

Sua primeira aula, uma das mais lindas de todo o livro e que o permitem fazer tudo que fará em seguida, é a Aula de Jardim, com o Sr. Bigode, assim chamado pelo bigode imenso que ostenta. É o Sr. Bigode quem percebe que o Tistu tem o polegar verde, e o garoto chega até a protestar, em uma das cenas mais ternas do livro: “Verde! Acho que é cor-de-rosa, e até que está bem sujo! Verde coisa alguma!”, mas, como o Sr. Bigode explica, esse é um dom oculto, que as pessoas não vão ver, mas ele é capaz de encontrar sementes que estão por todo lado e fazer com que elas cresçam. Nessa primeira Aula de Jardim, o Sr. Bigode o coloca para arrumar uns vasos com terra, e logo deles brotam lindas begônias em uma das cenas mais lindas do livro. Tistu nem entende bem seu poder, inicialmente, tampouco sabe o que fazer com ele… mas ele vai descobrindo.

Sua segunda aula é com o Sr. Trovões (um homem que fala alto e grosso como os trovões o tempo todo), uma “Lição de Cidade e Ordem”, e é um máximo como isso é completamente diferente da aula com o Sr. Bigode. Aqui, o Sr. Trovões fala sobre “ordem” e “desordem”, mostra a cadeia, e Tistu não parece entender por que aquele é um lugar tão feio, e se isso não torna as pessoas más e tudo o mais. O garoto tem uma inteligência admirável e humanidade impressionante, e isso é sempre motivo de susto – o Sr. Trovões lhe dá um veredito depois da aula dizendo que “é necessário ficar de olho nele porque ele pensa demais”. E de fato o faz. Se aquele lugar parece tão feio e tão triste, Tistu pensa em uma maneira de tornar a cadeia um lugar menos feio, porque assim talvez as pessoas lá dentro não ficassem tão tristes… e ele usa seu dedo verde, e transforma a cadeia em um castelo de flores.

É lindo… e percebemos que é isso o que Tistu fará de agora em diante: surpreenderá a todos. É claro, no entanto, que ninguém entende que foi Tistu ou mesmo cogitam que possa ter sido – você sabe, adultos e suas ideias pré-fabricadas, tentando explicar o que não tem explicação. Típico. Mas o castelo de flores se torna uma atração, reúne jornalistas, fotógrafos, botânicos, e os prisioneiros se tornam felizes, o que ensina algo a Tistu: “Descobri uma coisa extraordinária. As flores não deixam o mal ir adiante”. Quando o Sr. Trovões o leva a outra aula, uma “Lição de Miséria”, na favela, Tistu vê uma realidade apavorante e triste que ele adoraria ajudar de alguma maneira, e ganha novamente um veredito não muito positivo do complicado Sr. Trovões: “Menino distraído e raciocinador. Os sentimentos generosos privam-no do senso da realidade”. Eu adoro a IRONIA presente nesses trechos!

Maurice Druon provoca… e faz pensar.

Talvez algumas coisas pudessem de fato ser resolvidas se os adultos se parecessem menos com o Sr. Trovões e mais com o Tistu – na sua inocência de criança e sem pensar muito, apenas almejando o bem, Tistu chega a conclusões e ideias que, para ele, são óbvias, e sempre dão resultado… mas que intrigam e enfurecem adultos, que não as querem se propagando. Isso é tão dolorosamente real, infelizmente. Tistu resolve, também, o problema da favela, espalhando flores que servem de decoração, que inundam o lugar de perfume, que oferecem sustentação às casas mais frágeis… é uma solução fofa de um garoto inteligente – é pensado para ser utópico, para ser infantil, mas é belo e funciona. A favela se torna o lugar mais bonito da cidade, passa a ser visitado por todo mundo, os moradores, inteligentes, aproveitam, cobram entrada, fazem fortuna… Tistu gera empregos – de guia, de guarda, de fotógrafo, de vendedor de cartão postal – e, com isso tudo, eles constroem um prédio alto para que as pessoas possam morar e, com as pessoas que precisam para construir o prédio, ninguém mais fica sem trabalho.

O próximo lugar visitado por Tistu é o hospital, onde ele conhece o Dr. Milmales e sente que o lugar é triste, por algum motivo… ele não entende por que o lugar é triste, se é um lugar que garante a saúde, que salva pessoas – devia ser o lugar mais feliz do mundo. Mas Tistu entende o motivo da tristeza quando conhece uma menina doente e ele percebe que a medicina de nada adianta se não houver vontade de viver. Ele chega a perguntar ao médico se ele não tem “umas pílulas de esperança”, e como a resposta é não, ele sabe exatamente o que a menina precisa para voltar a andar: precisa parar de olhar para os buracos no teto, e de incentivo para querer sair dali, para querer caminhar pelo jardim, então ele faz um jardim florescer, uma rosa sempre dando novidades e, naquela mesma noite, a perna da garota começa a mexer. É uma sequência lindíssima e emocionante.

Como todo o livro.

Tistu transforma tudo por onde passa… faz até Mirapólvora virar Miraflores, e o seu maior feito vem quando uma guerra parece prestes a explodir e ele tem uma Aula de Geografia e de Fábrica. Ele descobre que os Voulás e os Vaitimboras estão brigando por um trecho de deserto sem nada por causa do petróleo que está lá embaixo, e o Sr. Trovões explica que o petróleo é importante porque ele “é essencial para a guerra”, e Tistu acha que nada daquilo faz sentido: eles guerreiam pelo petróleo porque precisam do petróleo para a guerra? Sempre curioso e inteligente, Tistu busca informações, busca entender o que, de fato, é a guerra, e então ele vai descobrindo os seus horrores, e fica ainda mais angustiado ao descobrir que é a fábrica do Sr. Papai quem torna isso tudo possível, produzindo canhões, armas e munições e enviando para os Voulás e Vaitimboras no deserto…

O garoto percebe então, que é com esses canhões que vai acontecer aquilo de que o Sr. Bigode lhe falou, e as pessoas vão perder casas, jardins, países e outras pessoas… então, ele se volta contra o Sr. Trovões, diz que “acha seu comércio um absurdo”, mas eventualmente percebe que os canhões de ambos os lados estão ali, agora, sendo enviados pela fábrica do Sr. Papai – são aqueles canhões que estão ali agora que serão usados para atirar um no outro… ele só precisa colocar o seu dedo verde em ação. Ele leva uma bofetada do Sr. Trovões, um zero e, depois, o Sr. Papai o vê andando pela fábrica, tocando em tudo, e acredita que ele está tentando recuperar os pontos perdidos… mas não, ele só está parando a guerra com flores. E ele consegue, porque Tistu sempre consegue o que quer, com seu dedo verde e sua cabecinha pensante! É inusitado como tudo floresce e inviabiliza a guerra…

Agora, no entanto, a fábrica de Mirapólvora/Miraflores e o Sr. Papai estão desacreditados no mundo todo, e Tistu acaba se entregando ao perceber, sem entender, que as pessoas estão indignadas com o fim da guerra… e é um momento quase utópico, mas lindo, quando alguns adultos começam a “repensar” suas “ideias pré-fabricadas” – a começar pelo Sr. Papai e pelo Sr. Trovões, inesperadamente. Eles são compreensivos com Tistu, eles entendem que ele não gosta de guerra, que ele não gosta de armas, e o fato de ele ter corajosamente se entregado como aquele que vem fazendo flores florescerem do dia para a noite por todo lado em Miraflores faz com que o Sr. Papai tome uma decisão rápida e redefina a cidade – a começar pela fábrica, que passa a ser uma fábrica de flores, e o “menino do dedo verde” se torna célebre, não só ali, mas no mundo todo.

Um dos momentos mais tristes do livro, mas que conduzem a uma conclusão perfeita de Maurice Druon, é quando o Sr. Bigode morre e Tistu fica confuso – afinal de contas, como ele diz, “ele parou a guerra”. Mas ele descobre que as pessoas também morrem por outro motivo, e ele queria que isso não tivesse acontecido… é um dos momentos mais tristes do livro quando Tistu vai ao cemitério visitar a lápide do Sr. Bigodes, fazendo todo tipo de flor, já existente ou criada por ele, brotar no que se torna “a mais fantástica sepultura que já se viu”, na esperança de que o Sr. Bigode reaja… mas ele não reage. Com dor, ele percebe que não há nada que ele possa fazer pelo Sr. Bigode agora, e Ginástico, seu pônei, fala sobre como agora ele entendeu que a morte é um problema no qual nem mesmo o seu dedo verde e as suas flores podem dar um jeito.

Mas Tistu não desiste… algumas pessoas dizem que o Sr. Bigode está no cemitério, outras que ele está no céu, e como no cemitério ele não veio falar com ele, Tistu resolve construir uma escada que o leve até o céu – e aqui temos a conclusão fascinante e emocionante de “O Menino do Dedo Verde”, com o Tistu escalando e escalando e escalando por uma escada que ele mesmo fez crescer, e ele continua subindo mesmo depois que a escada chega ao fim e ele está descalço e “asas sem um pássaro” ao seu lado roçam nele… Tistu está voltando para casa. Enquanto isso, Ginástico, o pônei, come capim escrevendo um recado para os moradores da Casa-Que-Brilha ao lado dos chinelinhos que Tistu derrubara – um recado que explica muito sobre o garoto do polegar verde com quem todos eles conviveram durante todos esses incríveis anos: “Tistu era um anjo”.

“O Menino do Dedo Verde” é um verdadeiro marco. Repleto de momentos emocionantes e inteligentes, a história faz com que nos apaixonemos por Tistu, pelo que ele pode fazer e pela maneira como pensa, enquanto ele transforma a vida de todo mundo que encontra – e, com sorte, também transforma a vida de alguns adultos que leem sua história. O último capítulo do livro, chamado de “No qual ficamos sabendo finalmente quem era Tistu”, é o toque de emoção e de beleza que Maurice Druon escreve tão bem para coroar sua história, para marcá-la definitivamente na memória e no coração de cada um de seus leitores… leiam! “O Menino do Dedo Verde” rende risadas, sorrisos, reflexões e, possivelmente, algumas lágrimas.

 

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