Fronteiras do Universo, Volume III – A Luneta Âmbar (Philip Pullman)
“Will é o portador da faca sutil. Ele prometera ao pai, no leito de
morte, que iria entregar a lâmina terrível ao Lorde Asriel. Está se aproximando
uma guerra, a maior guerra de todos os tempos, e a lâmina é a única arma que
pode render o inimigo. Um forasteiro num mundo estranho, Will começa sua
jornada perigosa. Mas como pode cumprir a promessa, quando Lyra, sua corajosa
companheira, está desaparecida?”
UMA
CONCLUSÃO ÉPICA PARA A TRILOGIA “FRONTEIRAS
DO UNIVERSO”. “A Luneta Âmbar” é
uma leitura mais longa e, em muitos pontos, menos
cativante que “A Faca Sutil” (que
continua sendo meu livro favorito dos três), mas Philip Pullman volta a
entregar uma narrativa empolgante e consistente, atravessando uma série de
mundos diferentes enquanto Lorde Asriel continua com sua missão de acabar com a
Autoridade, Lyra e Will continuam em missões paralelas sem saber seu grande
papel na história, e a Dra. Mary Malone vive uma das experiências mais
fascinantes que eu já li na literatura – e que eu adoraria viver eu mesmo. A
variedade de cenários e de personagens protagonizando “A Luneta Âmbar” é, no entanto, algo paradoxal, porque dá ao livro
a sensação de grandiosidade e complexidade, mas também o amarra em algumas
situações.
Sinto que “A Luneta Âmbar” poderia ser mais curto…
ao fim do livro, estou satisfeitíssimo com a história que li e vivi, mas não
vou dizer que não desejei, algumas vezes, que o livro fosse mais breve em
alguns pontos – Will e Lyra passam um tempo exageradamente longo no Mundo dos
Mortos, por exemplo, e às vezes parece que a história custa a caminhar.
Percebemos, eventualmente, quando Lorde Asriel atinge seus objetivos mais de
100 páginas antes do fim do livro, que Philip Pullman acaba se saindo muito
melhor na parte mais introspectiva da
trama do que na ação desenfreada de grandes guerras e missões. O livro é muito
íntimo e delicado, e nos entrega momentos em que sua prosa é quase poética, e
nos sentimos em um estado de semitranse como o que Will usa para cortar mundos,
Lyra para ler o aletiômetro ou a Dra. Mary Malone para ver os dimons escondidos
de pessoas em seu mundo.
É uma sensação deliciosa.
Mary Malone,
a meu ver, é a melhor parte desse livro – e percebo que ela e Will
protagonizaram meus trechos favoritos de “A
Faca Sutil” também. Várias vezes durante a leitura, me peguei folheando “A Luneta Âmbar”, buscando ansiosamente
pelo próximo capítulo que nos mostraria novamente a Dra. Malone, o mundo dos
mulefas, todo aquele encanto inteligente que Pullman cria tão bem. Foi um
grande alívio e felicidade perceber que a reta final do livro se passaria
inteiramente no mundo dos mulefas, porque era um lugar que, assim como a
própria Mary, eu não queria deixar nunca
mais. É impressionante como Mary Malone é apresentada depois de a trilogia
já estar bem encaminhada, e ela tem a maioria de suas cenas sem outros
personagens que já conhecíamos antes de “A
Luneta Âmbar” e, ainda assim, ela tem o carisma de ser minha personagem favorita.
O livro
começa de onde “A Faca Sutil” se
despediu: Lyra foi sequestrada pela Sra. Coulter e Will está sozinho, e embora
tenha prometido ao pai que entregaria a Faca Sutil ao Lorde Asriel, por
quaisquer motivos pelos quais ele a queira, antes ele precisa encontrar a amiga
e salvá-la. Assim como aconteceu no livro anterior, esse início de livro me
pegou mais nas sequências de Will do que nas de Lyra – Lyra estava adormecida
porque a Sra. Coulter supostamente a queria proteger de pessoas que a queiram
matar antes que ela cumprisse sua missão na história, e, enquanto “dormia”,
Lyra sonhava com o Mundo dos Mortos e com conversas com Roger… uma sequência
interessante que vinha partida entre capítulos, o que eu achei curioso,
inteligente e muito bem colocado. Assim, Lyra está quase “ausente” do primeiro
ato do livro, mas essa sua “experiência” guiará uma boa parte da trama a
seguir.
Will, por
sua vez, protagoniza momentos impressionantes. Ele está na companhia de dois
anjos, Balthamos e Baruch, personagens igualmente fascinantes e que talvez
mereciam ter sido mais explorados, e eu gosto da sutileza de pequenos detalhes
da escrita, de momentos que não são grandiosos ou impactantes, mas íntimos e
pessoais, como o Will aprendendo mais sobre a Faca Sutil, sobre como cortar
entre mundos, sobre como perceber as várias camadas, reconhecer as possibilidades,
saber exatamente onde cortar e para onde ir… as vibrações que sente na faca e o
que cada uma quer dizer. Também adoro as descrições dos anjos e como Will os vê
– como eles são mais visíveis ao anoitecer ou quando Will não olha diretamente
para eles, ou através do fogo da fogueira, da fumaça… e eu adorei o momento,
durante um abraço de Balthamos e Baruch, em que Will percebe que “eles se amam
apaixonadamente”.
São os Anjos
que nos ajudam a entender mais sobre o que Lorde Asriel busca: o fim da
Autoridade. Alguns Anjos, como Balthamos e Baruch, estão sendo caçados por
Metatron, o atual regente do Reino, depois de eles terem descoberto um segredo
que precisa ser contado a Lorde Asriel – embora os Anjos não falem muito sobre
isso e em detalhes com Will, é interessante como eles falam sobre a Autoridade
(e os vários nomes pelos quais ela é conhecida), e sobre como ela não é o
criador que diz ser, mas apenas um anjo como eles, o primeiro anjo e ser a
tomar consciência no Universo – é feito
de Pó como todos são, e Pó é “apenas o nome para o que acontece quando a
matéria começa a compreender a si mesma”. Outras informações, Baruch passa
ao Lorde Asriel, como o plano de Metatron de implantar uma inquisição anulando
todas as igrejas…
Uma inquisição que vem diretamente do Reino
sobre todos os mundos.
Lyra
desempenhará um papel importante contra o plano de Metatron, embora não
entendamos ainda bem o que significa ela “estar no papel de Eva” – de qualquer
maneira, dela depende o futuro de todos os mundos e, justamente por isso, uma série de organizações da igreja querem
matá-la. Algumas pessoas são enviadas para matar Lyra, enquanto o Padre
Gomez é enviado para matá-la e para seguir a “tentadora”, a Dra. Mary Malone,
“que desempenhará o papel da serpente”. O resgate de Lyra da caverna na qual a
Sra. Coulter a mantém escondida de todos que querem matá-la acontece com a
ajuda de Will, Iorek e uma garota de um povoado próximo, enquanto dois
exércitos espreitam do lado de fora e tudo parece prestes a dar errado quando
Will vai tentar cortar uma janela para outro mundo e para fora daquela caverna,
e a faca se desfaz…
O livro é
recheado de pequenas surpresas, como a aparentemente indestrutível Faca Sutil
se partindo em pedaços ou o crescimento da personagem da Sra. Coulter como algo
a mais do que aquela mulher perversa
com um diabólico macaco dourado que conhecíamos até então. A Faca Sutil,
felizmente, é reconstruída com a ajuda de Iorek, mas é um trabalho conjunto de
Iorek, Will e Lyra, em uma das sequências mais impressionantes do livro – é de
arrepiar! A Sra. Coulter, por sua vez, vai atrás de Lorde Asriel ao perder a
filha, e percebemos alguns sentimentos sinceros dela em relação a Lyra, o que
nos proporciona uma nova visão sobre a personagem: agora, tudo o que ela quer é salvar a vida da filha que ama. É
legal como Philip Pullman construiu a personagem da Sra. Coulter como uma
anti-heroína – porque é isso o que ela acaba sendo no fim das contas.
Mas falemos
da Dra. Mary Malone, porque, como eu já disse: PARA MIM, ESSAS SÃO AS MELHORES
PARTES DO LIVRO. Mary está caminhando ainda sem rumo por Cittagàzze, sabendo
que precisa “bancar a serpente”, mas sem saber o que isso significa, esperando
que ela descubra com o tempo… seguindo instruções que as partículas de Sombra
lhe passaram no seu computador em seu mundo e sem ter muita ideia do que vem
pela frente. Então, ela encontra uma nova janela, uma passagem a um terceiro
mundo, e é uma das sequências mais gostosas de se ler – e, quando eu digo isso,
eu não me refiro apenas a “A Luneta
Âmbar”, mas de modo geral: ler a chegada de Mary Malone ao mundo dos
mulefas me causou uma sensação tão boa que é, para mim, uma das melhores coisas
que eu li na vida. Me causou um pouco de
inveja, certamente, mas ainda assim uma sensação boa.
A maneira como
Mary Malone encontra um novo e diferente mundo, com árvores imensas, frutos
grandes, redondos e pesados, animais com organizações corporais diferentes de
qualquer coisa que tenha visto em seu mundo, seres conscientes com quem ela
rudimentarmente consegue se comunicar e que lhe oferecem carona – seres
chamados mulefas e que se locomovem com rodas que são os frutos das imensas
árvores que Mary viu assim que chegou a esse novo mundo… tudo é fascinante e
apaixonante, e minhas anotações sobre esse trecho do livro falam sobre como
“foi ótimo e triste” ler isso. “Ótimo” porque é fascinante, e “triste” porque
eu queria estar em seu lugar. Sem saber o que fazer a partir de então, Mary
Malone passa dias com os mulefas, e
adoro vê-los aprendendo a se comunicar, amo ver Mary fazendo amizade com Atal,
entendendo a relação dos mulefas com as “árvores-de-rodas”.
Minha sensação é de que eu queria um livro
extra inteiramente sobre Mary Malone e o mundo dos mulefas. Philip Pullman
nos conduz com delicadeza e destreza por novos significados e descobertas, como
quando Mary Malone fala com Atal, sua amiga mulefa, sobre Sombras (como ela
chamava em seu mundo) e Pó (como Lyra chama), e Atal sabe exatamente do que ela
está falando, porque também existe naquele mundo e, inclusive, os mulefas podem
vê-lo a olho nu: ali, eles chamam de uma palavra cujo significado parece o de
“Luz” para eles: Sraf. O autor constrói um terceiro mundo complexo e
convincente no qual as informações coincidem com outras que já conhecemos. Atal
fala sobre como é o Sraf que os torna inteligentes, e como viram que Mary o
possuía quando chegou e, por isso, sabia que ela era como eles, mesmo com uma
aparência tão diferente…
Ela também
fala sobre como o Sraf vem aos mulefas com maior intensidade quando eles são crescidos
(assim como o Pó, presente em grande quantidade em adultos do mundo de Lyra,
mas não em crianças), e a relação deles, o Sraf e as árvores-de-rodas – se no
mundo de Lyra, ao crescer, as crianças atraem Pó e seus dimons se fixam em uma
forma, naquele mundo os mulefas crescidos começam a usar as nozes/rodas das
árvores e começam a atrair o Sraf. É fascinante como, no mundo dos mulefas, um
fruto torno isso possível literalmente,
e como a história (o “faz-parece”) conta sobre uma serpente que se enroscou no
fruto da árvore e convidou a primeira mulefa a fazer o mesmo – a tentação, o
“pecado original”, algo parecidíssimo com as nossas histórias, e Pullman
conseguiu recriar essa história de Adão e Eva no mundo de Lyra, com dimons, e
no mundo dos mulefas.
QUE
PERSPICÁCIA, QUE PERFEIÇÃO.
Que escrita impecável.
Depois de
conversar com Atal sobre tudo isso e, principalmente, sobre o Sraf/Pó/Sombras,
a Dra. Mary Malone começa um experimento e começa a trabalhar com placas de
laca que sabemos que serão, futuramente, a luneta âmbar que dá nome ao livro:
um instrumento que permite a qualquer pessoa ver o Pó – e é interessante que a Luneta Âmbar seja o único dos
objetos que dão título aos livros da trilogia cuja invenção/construção
presenciamos. A descrição de Pullman me faz ficar sem fôlego só de pensar na
possibilidade de ver o Pó – queria também poder vê-lo, mas, através de Mary,
temos essa sensação intensa e reconfortante de fazer parte do mundo. É algo tão vivo, tão natural, tão presente –
a felicidade de Mary é, nesse caso, também a nossa felicidade! E a felicidade
de Atal porque, ao que tudo indica, os
mulefas estavam esperando por esse momento.
É como se
Mary tivesse crescido, como se seu dimon tivesse se fixado ou como se ela fosse
grande o suficiente para usar uma roda da árvore: agora, os mulefas depositam
nela uma esperança grandiosa – alguma coisa está acontecendo de errado com o
Sraf, que parece estar “fluindo para fora do mundo”, ao invés de cair sobre as
árvores-de-rodas como acontecia no passado… assim, as árvores estão morrendo e,
se não existirem mais, os mulefas tampouco existirão. Mary é a última esperança
dos mulefas para encontrarem uma maneira de fazer com que o Sraf continue no
mundo deles. Naturalmente, Mary Malone não tem uma resposta para eles, mas
promete tentar ajudar, porque ela se afeiçoou tanto a esse mundo e aos mulefas
que ela não pode deixar de pelo menos tentar
fazer alguma coisa por eles… por isso, ela escala uma árvore e observa.
Todas as
passagens de Mary Malone são fascinantes, embora, em sua maioria, breves. Com a
ajuda dos mulefas, ela constrói uma plataforma para poder ficar em cima de uma
árvore altíssima e observar o comportamento do Sraf no céu – inclusive,
enquanto o Sraf parece fluir com mais intensidade do que nunca para fora daquele mundo, Mary Malone tem uma
interessante experiência fora do seu corpo, e algumas respostas começam a lhe
ocorrer conforme ela vai pensando em tudo o que sabe. “Coincidências” como o
fato de as árvores-de-rodas estarem apresentando problemas há 300 anos, o mesmo
tempo no qual, eu sem mundo, a Real Sociedade foi criada ou, no de Lyra, alguém
inventou o aletiômetro e, ainda, a Faca Sutil foi criada em algum outro mundo…
o que exatamente aconteceu há 300 anos que causa essa mudança no Sraf?
Em paralelo
às histórias, descobertas e reflexões de Mary Malone, confesso que eu achei
quase chato ler o restante do livro –
as partes de Will e Lyra descendo ao Mundo dos Mortos, por exemplo, nunca
conseguiram me prender e interessar tanto quanto a de Mary. Presumo, é claro,
que alguns leitores digam exatamente o
contrário, e então vai depender do que mais te interessa em uma leitura, o
que eu acho algo inteligente de Philip Pullman, que consegue, com bons
personagens, contar uma história caminhando por diferentes gêneros. Eu gosto do
tom experimental e introspectivo da jornada de Mary, mas certamente algumas
pessoas adoram a jornada de Will e Lyra ao Mundo dos Mortos para que Lyra
resgate Roger e para que Will consiga conversar com o pai uma última vez…
naturalmente, alguns trechos são marcantes e muito muito bons.
A
introdução, por exemplo, foi algo peculiar – a maneira como Will tem
dificuldade para cortar uma janela, mesmo tão habilidoso com a Faca Sutil como
atualmente é, e como ele corta uma janela para um mundo quase idêntico ao que
ele e Lyra estavam, mas ele se depara com um homem que acabara de ver no mundo
anterior, morto, aparentemente vivo. Aquele é o caminho para o Mundo dos Mortos,
e eles começam uma longa caminhada na qual a paisagem genialmente muda enquanto
eles descem, deixando o mundo como o conheciam para trás… passamos por uma
cidade, por uma espécie de alfândega, e Will, Lyra e dois companheiros
galivespianos acabam indo a um lugar “onde os vivos que chegam ali por engano
vão para esperar o momento da morte”. Isso me faz pensar um pouco em Rick
Riordan, mas sem o tom de comédia, é claro…
Philip
Pullman é competente e soturno, e eu adoro o tom sombrio dessa passagem. Gostei
muito, também, do tom reflexivo, meio triste e meio poético, daquelas pessoas
que vêm de um mundo no qual o vulto da
morte o acompanha a vida toda, como um amigo, sempre presente – e, se
pensamos sobre isso, o vulto de nossa morte realmente sempre está ao nosso lado, mas as pessoas na maioria dos mundos
preferem não pensar nisso e, por isso, esses vultos ficam escondidos. De uma maneira quase estranha, isso tudo é bastante
bonito, e me fez admirar a escrita de Pullman tanto quanto eu admirei a maneira
precisa e convincente como ele criou a ideia de dimons lá em “A Bússola de Ouro”. Sabendo do vulto da
morte, que é quem acompanha as pessoas para o Mundo dos Mortos, Lyra faz uma
negociação com o seu para que ele a leve para lá…
Voltar, no entanto, ela terá que voltar
sozinha, se conseguir.
Acho que uma
das partes mais marcantes de “A Luneta
Âmbar”, e certamente a melhor parte de toda a trama que envolve o Mundo dos
Mortos, é o fato de Lyra ter que deixar Pan para trás se quiser entrar no barco
e rumar para esse outro mundo… afinal de contas, o Mundo dos Mortos é um lugar
no qual dimons não entram, e se Lyra quiser seguir adiante nesse plano, ela
terá que deixá-lo para trás, sem ter certeza de um dia poderá se reunir a ele
mais uma vez. Will até protesta, diz que isso não é justo e que ele e os
galivespianos “não têm que deixar nada para trás”, mas o barqueiro é
irredutível – e a verdade é que Will e os demais também terão que deixar algo para trás… só não é algo que eles
possam ver, como Lyra pode ver Pantalaimon. É extremamente tenso, mas faz
sentido completo: afinal de contas, é isso o que significa entrar no Mundo dos
Mortos.
A sequência
é de arrepiar.
“A
infelicidade dela é que pode ver e falar com a parte que tem de deixar. Vocês
não saberão até estarem na água, e então, será tarde demais. Mas todos vocês
têm que deixar essa parte de vocês aqui. Não há passagem para a terra dos
mortos para seres como ele”
É
angustiante presenciar a separação de Lyra e Pan – compramos essa ideia desde “A Bússola de Ouro”, e parece uma
atrocidade e um feito impossível separar um humano de seu dimon, mas é o que
presenciamos – e é como se sentíssemos também a dor profunda que toma conta de
Lyra enquanto ela se afasta de Pantalaimon… que se sente traído e abandonado.
No barco rumo ao outro mundo, Will e os demais também sentem a parte deles que
seria seu dimon, se fosse visível, ficando para trás e a dor toma conta de
todos. Então, eles chegam ao Mundo dos Mortos, enfrentam dimons, encontram
crianças de todos os mundos, algumas mortas recentemente, outras mortas há
tanto tempo que nem se lembram de mais nada de sua vida, e tudo o que querem é
poder ouvir as histórias que talvez Will e Lyra têm a contar sobre o mundo lá
de cima.
Eventualmente,
Lyra e Will conseguem encontrar Roger, bem como os fantasmas de John Parry e um
dos personagens mais queridos de “Fronteiras
do Universo”: Lee Scoresby. Juntos, eles descobrem mais ou menos o que precisam fazer ali, e colocam um fim no vazio da morte, encontrando um caminho,
com a ajuda das harpias que só queriam
ouvir histórias verdadeiras, rumo a um lugar próximo ao mundo dos vivos,
onde Will pode abrir uma janela e permitir que os mortos saiam… alguns deles,
liderados por Lee Scoresby e John Parry, irão primeiro ao mundo de Lorde
Asriel, para lutar ao seu lado contra os Espectros; outros já buscarão a
liberdade no mundo que Will abre para eles. Ao saírem do mundo dos mortos, eles
se dissolvem em milhões de partículas e se tornam parte do mundo, exatamente como acontece com os dimons quando seus
humanos morrem.
É belo e
tocante.
Apesar de
toda a construção para a grande guerra, e apesar de o livro ter uma sequência
de ação de tirar o fôlego, tudo ali acontece diferente do que eu esperava – e
não é conclusivo como achei que seria, mas apenas um capítulo da grande
história… Will e Lyra chegam ao mundo em que Lorde Asriel e seu exército
observam a Montanha Nublada, esperando para acabar com a Autoridade e com
Metatron, e descobrem que a guerra já começou e que eles mesmos, depois de tudo
o que viveram, também estão mudando…
tanto é que, agora, eles já começam a ver os Espectros e, consequentemente,
estão vulneráveis a eles. É naquele mundo que eles devem reencontrar seus
dimons, e eles sentem que eles estão em perigo por causa da presença dos
Espectros, e são os fantasmas, liderados por John e Lee, que conseguem segurar
os Espectros por um tempo…
O fim de
Metatron e da Autoridade é breve. A Sra. Coulter e Lorde Asriel enfrentam
Metatron e se sacrificam para garantir a sua morte, em uma cena altruísta e
quase inesperada. Will e Lyra, por sua vez, presenciam a morte da Autoridade,
mas pouco têm a ver com ela, já que a Autoridade era um ser velho e cansado,
esperando o momento de se dissolver e se tornar parte do mundo, como os dimons
ou como os mortos agora, desde que Lyra colocou “um fim na morte”. Tudo o que Will e Lyra fazem é libertar a
Autoridade para isso. Depois, Will e Lyra precisam encontrar seus dimons e
tirá-los em segurança daquele mundo, com Will abrindo uma janela para algum
outro mundo… ao verem os dimons, ambos em forma de gatos, Will e Lyra pegam “o
dimon mais próximo” e escapam, e sentem um choque ao perceberem que cada um pegou o dimon do outro.
É um momento
mais íntimo do que se pode imaginar!
Então, Will
e Lyra estão em segurança, com seus dimons, em um mundo completamente
diferente, longe da guerra iniciada por Lorde Asriel – os dimons, no entanto,
não estão por ali, e não estarão tão cedo, porque eles se sentem traídos,
abandonados e não sabem se podem voltar a confiar em seus humanos. Will e Lyra
não se sentem mais como se sentiam no Mundo dos Mortos e sabem que eles estão
por perto, mas não podem vê-los… enquanto isso, e essa é uma das minhas partes
favoritas de “A Luneta Âmbar”, Pullman
se despede de Lee Scoresby com palavras singelas e belíssimas – um dos
personagens mais queridos da trilogia, ele merecia uma despedida digna. Depois
de cumprir sua missão protegendo os dimons das crianças dos Espectros, ele
finalmente se solta, se permite se tornar parte do universo… subindo como um balão, flutuando em direção
à abóbada cheia de estrelas, onde os átomos de Hester esperam por ele.
EMOCIONANTE.
Rumo à reta
final do livro, então, eu fiquei TÃO FELIZ ao perceber que o mundo tranquilo de
relva no qual Will e Lyra estão é o mesmo
mundo em que Mary Malone está. Eles veem animais-de-rodas vindo em sua
direção, e Lyra sabe que pode confiar neles porque pergunta ao aletiômetro, e
os dois ganham caronas dos mulefas até Mary Malone, e é incrível reencontrá-la
depois de tanto tempo, ver quem ela se tornou ali, ver como ela tem sua própria
casa, como sua amizade com Atal se desenvolveu… agora, Will e Lyra estão no
lugar que precisavam estar, e eles precisam impedir
que o Sraf vá embora. A janela aberta por Will no Mundo dos Mortos também
descobrimos ser para aquele mundo: é ali que os mortos estão saindo e se
juntando novamente ao universo, e Malone presencia isso, encantada, e os ouve
falando sobre como as harpias só queriam que “eles contassem histórias”.
“Contar
histórias” se torna, então, a grande resposta, e é o que Mary Malone faz e faz
com que Will e Lyra façam – a dinâmica dos três é fascinante e deliciosa. Gosto
muito da história de Mary Malone, e como as crianças se interessam pela sua
história de como ela deixou de ser freira.
“Marzipã” é, sem dúvida, um dos
melhores capítulos de “A Luneta Âmbar”.
Aqui, Mary Malone conta a história cheia de “faz-parece” sobre como não se
lembrava, mas tinha se apaixonado/ido à China na adolescência, e de como ela
não queria abrir mão de sentir aquilo novamente. Então, depois de anos como
freira, mas também anos estudando, ela acabou descobrindo, em um evento
científico em Lisboa, que ser freira não era o que ela queria fazer pelo resto
de sua vida, e então ela se torna a Mary Malone que conhecemos: uma cientista curiosa, inteligente e, como
diz, livre.
Enquanto
Malone fala sobre o seu primeiro beijo e sobre o que sentiu em uma antiga festa
por um garoto, algo desperta dentro de Lyra – algo que estava ali há muito
tempo, na verdade, porque enquanto escuta Mary, ela reconhece o que ela mesma
sente por Will… algo que talvez ainda não entenda por completo e que, para ela,
é como uma casa dentro de si, esperando para ser habitada. A cena é repleta de
tensão e excitação, seu coração bate mais forte, ela abraça os joelhos, e,
naquele momento, é como se estivéssemos lá com Lyra, como se estivéssemos nós
mesmos (re)descobrindo a primeira vez que nos apaixonamos e que tivemos essas
sensações… é um capítulo intenso e, ao mesmo tempo, calmo, e é ali que, sem
saber, Mary Malone desempenha o papel da “serpente”. Nada grandioso ou
condenável – tudo é muito mais simples do que se imagina.
Porque assim é a vida, assim é o Sraf/Pó…
Depois da
conversa com Mary, quando Will e Lyra saem para procurar por seus dimons no dia
seguinte, eles descobrem o que sentem, o que querem, e a cena é bonita e tem
tudo a ver com o despertar da idade. A hesitação da proximidade, o beijo
cuidadoso, mas empolgante e apaixonado, o abraço. Quando Will e Lyra retornam à
aldeia dos mulefas depois de terem se
descoberto, Mary Malone não precisa nem usar a luneta âmbar para olhar para
eles e saber que eles estão brilhando intensamente, que eles irradiam Sraf como
não irradiavam antes – eles vêm calmamente, leves, andando de mãos dadas como
se nada ao redor deles existisse, e Mary percebe que, naquele momento, eles são completos… eles são tudo aquilo que
o ser humano pode ser. E é isso que faz com que o Sraf pare de ir embora e
volte a cair sobre o mundo dos mulefas como outrora.
É
completamente diferente do que eu imaginei, e eu adoro isso – adoro que Pullman
tenha nos enganado com aquelas falas contínuas e grandiosas sobre a guerra
quando, no fim, é algo simples, íntimo e natural… algo que não tem por que ser
enfrentado, como percebemos desde sempre. A conexão de Will e Lyra atrai o Pó até eles e, consequentemente,
até o mundo, e eles não precisam mais se preocupar com o Padre Gomez, que já
falhou em sua missão e que enfrenta um combate com Balthamos, na última e
impactante cena do Anjo. Essa sequência de Will e Lyra, no entanto, não terá um
resultado permanente e, para impedir que o Pó/Sraf continue vazando em direção
ao vazio, todas as janelas que um dia foram abertas entre os mundos precisarão
ser fechadas… o que isso significa para Will e Lyra, no entanto, é algo
doloroso.
Revemos Pan
e conhecemos oficialmente o dimon de Will, eventualmente chamado de Kirjava, em
uma cena com Serafina Pekkala, na qual ela tem algumas coisas a explicar…
primeiro, ela fala sobre como as feiticeiras se tornam feiticeiras e como Will
e Lyra, embora nunca poderão voar ou viver por tanto tempo quanto elas, se
tornaram “feiticeiras” em todos os demais sentidos com a sua ida ao Mundo dos
Mortos: agora, eles podem se afastar tanto de seus dimons quanto as
feiticeiras, o que quer dizer que eles podem percorrer caminhos distintos e
distantes, ver coisas diferentes, aprender ainda mais. É uma proposta
interessante e de que Will e Lyra devem gostar… depois de falar com os dimons e
anunciar que “suas formas se fixarão em breve”, Serafina Pekkala vai conversar
com Mary, uma das cenas mais inteligentes e interessantes do livro, sobre
ignorância e conhecimento.
Uma batalha eterna em qualquer mundo em que
vivamos.
Como
comentei no início dessa review, “A
Luneta Âmbar” se sai muito melhor em seus momentos introspectivos e de
reflexão do que em grandes batalhas épicas, e é por isso que eu gosto tanto da
reta final do livro, porque é íntimo, sentimental e poético. Will e Lyra
eventualmente reencontram seus dimons, mas o momento não é alegre como poderia
ser, porque eles precisam enfrentar algumas verdades, como o fato de que todas as janelas precisam ser fechadas –
o que quer dizer que eles não poderão ficar andando de mundo em mundo. Para os
dimons, isso é algo que eles resolverão facilmente com Will indo morar no mundo
de Lyra ou vice-versa, mas Will e Lyra, graças à viagem ao Mundo dos Mortos e à
conversa com John Parry sabem mais a respeito disso do que os dimons: eles não podem viver muito tempo em um mundo
que não é o deles…
…os dimons adoecem, as pessoas morrem…
Então, se as
janelas não podem ficar abertas e se um não pode viver no mundo do outro,
parece que a única solução seria abrir uma janela, passar rapidinho para que o
Pó não vazasse muito e fechá-la, de tempos em tempos, passando um tempo em cada
mundo… os dimons, no entanto, refutam essa ideia porque a abertura das janelas
causa a criação de Espectros. Então, Will
e Lyra não poderão viver juntos – não poderão viver o amor que eles acabaram de
descobrir, e tudo é tão dolorosamente intenso para eles. O sofrimento toma
conta de ambos, e toda a escrita é poderosa e pungente, nos atinge em cheio.
Cada um estará em seu mundo, desempenhando uma função importante, e apenas uma
janela pode ficar aberta, mas eles não são egoístas o suficiente para escolher
que seja uma para eles: eles precisam
deixar aberta a janela do Mundo dos Mortos ao mundo dos mulefas…
Então, eles
se despedem. A escrita sensível e dolorosa nos guia pelos sentimentos de ambos
de coração apertado, e eles fazem alguns acordos, como o “encontro” anual no
jardim botânico ou a promessa de que, quando morrerem, passarão pela janela
aberta novamente ao mundo dos vivos e, então, seus átomos se encontrarão no
espaço e ficarão unidos para sempre, impossíveis de se separarem… além disso,
fica eternamente a centelha de esperança de que eles podem voltar a se ver,
quem sabe. Xaphania fala para eles sobre como os Anjos têm outras maneiras de viajar pelos mundos, algo parecido com o que
eles chamam de “imaginação”, mas real, e embora talvez leve uma vida inteira,
talvez eles consigam fazer isso… e Xaphania fala sobre como “Will terá uma
amiga que já começou seus estudos e poderá ajudá-lo”: Mary Malone. Will e Lyra ainda se encontrarão…
Gosto de pensar que sim.
De qualquer
maneira, eles estão juntos agora e seus últimos momentos juntos são tocantes.
Gostei particularmente da maneira como Pullman apresenta os dimons fixando sua
forma. Pan e Kirjava se aproximam dos dois enquanto eles se despedem, então,
tomando uma decisão, Will toca o dimon de Lyra, algo que normalmente seria
contra as regras e proibido, mas que parece certo naquele momento e que causa
sensações intensas que Lyra carregará para sempre consigo; depois, Lyra faz o
mesmo com o dimon de Will, sabendo que ele está sentindo tudo o que ela está
sentindo. E, depois desse momento pessoal e íntimo, os dimons nunca mais mudam de forma – afinal de
contas, eles não querem esquecer a sensação da mão da pessoa amada em seus
pelos. É um momento perfeito, significativo e belo. E, agora, eles se separam,
vivem suas vidas, sem nunca deixar de pensar um no outro…
É um final com um tom melancólico, mas, ao
mesmo tempo, esperançoso.
“[…] não
deveríamos viver como se o céu fosse mais importante do que esta vida, aqui
neste mundo, porque o lugar onde estamos é sempre o lugar mais importante. […]
Temos que ser todas essas coisas difíceis como ser alegres, e gentis, e curiosos,
e corajosos, e pacientes, e temos que estudar e pensar, e trabalhar com
dedicação, todos nós, em todos os nossos mundos diferentes, e então
construiremos… […] A república do céu”
Belo livro,
certamente. Excelente conclusão à trilogia!
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Não entendi uma coisa. Pq Mary Malone teve que bancar a serpente? Em que momento ela teve que fazer isso?
ResponderExcluirÉ uma sequência bem mais singela do que se sugere durante todo o livro... a ideia da serpente, na Bíblia, é de que a serpente falou sobre o fruto para Eva, despertando nela a vontade de comê-lo; Mary Malone é quem, na história de Lyra, fala sobre seu primeiro amor, sua primeira paixão, e isso "desperta" Lyra para o que ela está sentindo em relação ao Will...
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