Cidade de Gelo (2020)
Mágico. Belo. Inteligente.
Ambientado
na bela e gelada São Petersburgo da virada do século XIX ao XX, “Cidade de Gelo” é um filme russo de 2020,
disponível na Netflix, que se beneficia de uma direção competente e uma
fotografia belíssima para narrar não apenas o romance aparentemente impossível
entre uma aristocrata e um rapaz que rouba nas feiras da cidade, mas também toda
a crescente insatisfação no país e a ascensão dos ideais socialistas que
levariam à Revolução Russa alguns anos depois, ainda no início do século. É um
filme primoroso e que me fascinou pelo seu tom quase mágico ao ver Matvey patinando depressa pelas ruas de São
Petersburgo, pelo romance belíssimo que ele inicia com Alissa, mas também por
todo o contexto histórico que me captou desde as primeiras cenas, e que são uma
parte muito maior do filme do que eu imaginei que seria.
Matvey e
Alissa demoram a se conhecer… eles são apresentados isoladamente, e têm muita
história para contar, cada um representando, de certo modo, um elemento que
continha as sementes da revolução. Alissa, por exemplo, era filha de uma
família aristocrata, mas ela não tinha interesse em casar-se com quem sua
família decidisse, como era de praxe naquela época. Alissa, na verdade,
tampouco se pensava em casar – era algo com que uma das empregadas sonhava, por
exemplo, fazendo “rituais” em frente ao espelho esperando ver o amor da sua vida, enquanto Alissa
estava ocupada demais lendo livros, dissecando sapos e sonhando com o dia em
que ela poderia estudar química… mas, no país, ela só poderia estudar se
tivesse a autorização do pai ou do marido, e o pai não estava nem um pouco
inclinado a dar a ela essa autorização.
Os diálogos
inteligentes nos mostram como os outros países da Europa estavam se
modernizando, seja nas faculdades, nos direitos das mulheres ou na
eletricidade, enquanto a Rússia parecia querer
a todo custo ficar para trás. E é nesse cenário que conhecemos, então,
Matvey – e eu me apaixonei por ele desde os primeiros momentos. Matvey é um
veloz entregador em patins que acaba perdendo o emprego por conta de um atraso
do qual não teve culpa – as ruas estavam fechadas justamente por causa da
chegada dos aristocratas. Sem emprego, mas veloz em seus patins, Matvey acaba
chamando a atenção de Alex, um cara que lidera um grupo de rapazes que rouba
nas feiras da cidade. Matvey não fica muito impressionado quando descobre o que
eles fazem, e alguns acham que ele não voltará, porque “é muito certinho”…
…mas ele
volta.
Gosto muito
de ver Matvey se juntando com os demais, e a verdade é que o grupo de “ladrões”
é por quem torcemos, não pela burguesia cruel que tenta a todo custo manter os
seus privilégios sem se importar com quem está passando fome na calçada do lado
de fora de seus palácios. Acho que é isso o que Matvey vai aprendendo, também,
e Alex é bastante persuasivo. Algumas das melhores sequências do filme trazem
Matvey aprendendo as estratégias do grupo e as colocando em prática, com
direito a cenas que me fizeram pensar em “Truque
de Mestre”. Já no primeiro dia de Matvey, ele consegue colocar as mãos em
dois ingressos para um baile que vai ser realizado no palácio, e Alex acha que
eles deviam ir: afinal de contas, as
pessoas mais ricas estarão lá… eles podem conseguir o que normalmente levam um
mês para conseguir nas feiras de gelo.
A sequência
do baile sobre patins no gelo é linda, e ainda apresenta um novo personagem do
qual sentiremos asco durante todo o filme: Arkadiy, um competente patinador de
uma família poderosa que decide se casar com Alissa. Assim, é momento de
começarmos a desenvolver o nosso romance entre Alissa e Matvey, que se viram
rapidamente uma vez quando ele escalou sua sacada para pichar sua janela, numa
espécie de trote de Alex e seus amigos no primeiro dia. No baile, eles se
reencontram quando Arkadiy se afasta de Alissa para investigar os supostos
roubos que estão acontecendo (!), e Matvey ajuda Alissa quando ela está quase
caindo. Não é nada excessivamente mágico, não envolve “amor à primeira vista”:
Alissa até percebe que foi Matvey quem estava roubando, mas promete não
entregá-lo se ele encontrá-la no dia seguinte, ao meio-dia.
O plano de
Alissa é que Matvey finja que é seu marido para dar-lhe autorização para ela se
matricular em uma faculdade de química, e é revoltante ver aquela bancada
julgadora que não está nem um pouco disposta a aceitá-la, apesar de seus
talentos reconhecidos por um professor, e que acaba desmascarando depressa toda
a armação que não foi suficientemente bem
planejada… na verdade, Alissa esperava que Matvey fosse um bom mentiroso,
por causa da sua “área de trabalho”, mas ele estava completamente perdido ali.
Quando Alissa volta para casa, brava, e deixa para trás brincos a Matvey como
“pagamento” por sua ajuda, ele os devolve, dizendo que ela o entendeu mal, e eu
adoro como as coisas começam a mudar de figura nesse momento, quando Matvey
consegue mostrar para Alissa que ele não é simplesmente um “ladrãozinho”, como
ela acredita.
São pessoas
como Alissa que precisam entender a causa de grupos como o de Matvey para que a
revolução aconteça – e eu quase esperava que o filme avançasse anos no futuro
para que tivéssemos mais detalhes sobre a Revolução Russa, a aparição de Lenin,
até o nascimento da União Soviética. Com Matvey, Alissa conhece “uma nova São
Petersburgo”, e é sempre interessante acompanhar quando personagens como Alissa
se aventuram por uma parte do mundo que
eles nunca conheceram. Eu adoro a conversa de Alissa com Alex, por exemplo,
no qual ela pergunta se ele está sugerindo que “a maioria da população abra mão
de seu dinheiro”, e ele responde que “a maioria da população não tem dinheiro, eles não são o
problema… são famílias como a dela que são”, a burguesia e a aristocracia que
construíram sua fortuna através da exploração das outras classes, o que é
sensacional! Então, ele entrega uma cópia de “O Capital”, de Karl Marx, para que ela leia e entenda melhor.
As coisas
ficam complicadíssimas para Alissa, eventualmente, justamente por causa de “O Capital”, porque o pai o encontra
entre os livros da filha, manda queimar todos os livros que ela lia, falando
sobre como “eles são perigosos”, e então Alissa se torna uma prisioneira, e ela
precisa escapar. A reta final do filme é eletrizante e traz ótimos momentos
quando Alissa foge de casa e se reúne a Matvey, Alex e os demais em um navio
abandonado, por exemplo, e quando o navio é brutalmente atacado e incendiado
pelas mesmas pessoas que estavam treinando sobre patins para espancá-los com
cassetetes. É uma sequência dramática que termina com a morte de Alex, Alissa
sendo levada de volta ao palácio para um casamento forçado, mais prisioneira do
que nunca, e Matvey pulando na água gelada para se salvar, o que quase lhe
custa a vida.
O final é
romântico, “mágico” e felizmente nos faz terminar com o coração quentinho…
depois de pensarmos que as coisas dariam terrivelmente errado várias vezes.
Matvey, depois de ser praticamente trazido
de volta do mundo dos mortos, consegue invadir o palácio e buscar Alissa, a
convidando para ir embora com ele para Paris, como ela mesma sugerira quando
fugira de casa e aparecera no barco abandonado. O clímax do filme é excelente,
da fuga de Matvey e Alissa até à estação de trem até o último confronto de
Matvey e Arkadiy, na plataforma, que termina com Matvey pulando no trem com a
última passagem, e levando um tiro do qual felizmente é salvo graças aos
“patins mágicos” do pai que sempre carregava consigo. É muito bom ver Matvey e Alissa felizes, quatro anos depois, com seus
sonhos realizados… eu adorei o filme!
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