A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata (The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society, 2018)
“Do you
suppose it's possible for us to already belong to someone before we've met
them?”
Baseado no
livro homônimo de Mary Ann Shaffer e Annie Barrows, e protagonizado por Lily
James e Michiel Huisman, “A Sociedade
Literária e a Torta de Casca de Batata” é um filme bonito e emocionante de
2018, que mescla o drama histórico, retratando a vida de uma ilha inglesa que
foi ocupada por alemães durante a Segunda Guerra Mundial, com o romance, em um
estilo de narrativa que, particularmente, me remeteu a obras de Jane Austen –
acredito, inclusive, que propositalmente, tendo em vista que a base para o
filme é uma sociedade literária
criada às pressas para esconder uma reunião ilegal, mas que acaba se
transformando em um refúgio para alguns habitantes daquela ilha. Visualmente
encantador e aconchegante, o filme apresenta conteúdo, beleza e carisma.
Acompanhamos
Juliet Ashton, uma escritora que perdeu os pais na guerra e agora, em 1946,
está fazendo sucesso com um livro que, na verdade, não é a sua grande paixão…
tem apelo comercial e está dando um retorno financeiro aceitável, mas ela
gostaria de estar escrevendo sobre coisas que considera mais relevantes – a única vez que ela tentou algo do tipo, quando
escreveu a biografia de Anne Brontë, ela vendeu apenas 28 cópias em todo o
mundo… para impedi-la de se acomodar com livros que não a fazem feliz e com um
possível casamento que também não envolve o amor esperado, Juliet recebe uma
carta inesperada da Ilha de Guernsey, de um homem chamado Dawsey Adams e que
encontrou um livro que pertencera a ela no passado.
O contato de
Dawsey, a paixão pelos mesmos autores e as curiosas histórias sobre a
“Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata” fazem com que Juliet e
Dawsey troquem algumas cartas ao longo dos dias seguintes, estabelecendo uma
conexão que parece vir de muito mais tempo. E, durante a troca de cartas,
conseguimos explorar um pouco do surgimento da sociedade literária e o seu
título curioso, com o filme brincando com um quê espirituoso de comédia, ao
mesmo tempo em que nos leva à brutal realidade da ocupação alemã durante a
Segunda Guerra Mundial. É tão bonita, emocionante e estranhamente triste a cena
da primeira reunião da sociedade literária, em 1941, antes de eles serem
realmente uma sociedade literária, quando eles se reuniram furtivamente para
comer carne.
Naquele dia,
pessoas que se conheciam apenas de vista foram reunidas em torno de algo que
sentiam falta: o contato humano, e conseguiram escapar dos guardas nazistas
inventando a história de que estavam reunidos para um “clube do livro”, que
eventualmente ganhou autorização para existir, depois de uma reunião forjada
com um guarda fiscalizador que adormeceu no meio da reunião e nunca mais
retornou… daquele dia em diante, no entanto, o grupo passou a se reunir
regularmente, aventurando-se em livros para explorar mundos que não podiam
explorar no mundo real, e tendo discussões acaloradas e divertidas a respeito
do que estavam lendo… eles construíram um refúgio belíssimo uns nos outros que
se tornou essencial para aguentar aqueles anos.
Juliet
Ashton fica encantada. Durante a
troca de cartas com Dawsey, ela sente como se fosse sua amiga, como se, em
parte, também pertencesse a esse grupo, e ela quer conhecê-los – e escrever
sobre eles. Finalmente ela encontrou algo
sobre o que vale a pena escrever. Então, ela meio que se convida para uma
reunião da Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata, um convite que é
visto com empolgação por alguns membros e com receio por outros, mas que rende
um dos momentos mais bacanas de todo o filme, quando Juliet lê um trecho da
biografia que escreveu sobre Anne Brontë, e eles terminam a noite rindo e
discutindo a respeito das Irmãs Brontë e Jane Austen. É fácil de entender por que Juliet queria tanto ser parte daquilo ali:
é um lugar incrível, cheio de pessoas incríveis.
“A Sociedade Literária e a Torta de Casca
de Batata” é aconchegante e acolhedor. O cenário da Ilha de Guernsey, na
Inglaterra, é um daqueles lugares fascinantes nos quais gostaríamos de passar
umas semanas, e isso é naturalmente intensificado pelas amizades que Juliet faz
no meio do caminho – e a maneira como descobre o amor. Apesar de todos os
membros da sociedade terem seu encanto e serem personagens ricos e
interessantíssimos, eu destaco Isola, que é uma mulher divertida,
constantemente bêbada, e que esconde uma solidão e o sonho de viver um grande
amor; e, é claro, Dawsey, com quem Juliet compartilha aquela conexão inevitável
desde as cartas. É gostoso ver Juliet se envolvendo com a vida e com a história
das pessoas da Ilha de Guernsey.
Juliet não
recebe a autorização para escrever sobre a Sociedade Literária – Amelia é
veementemente contra. Ainda assim, é uma experiência incrível, e Juliet não
pode deixar para lá a sua curiosidade, e ela quer entender por que não pode escrever, e quais são os detalhes da história que
ainda não contaram para ela… onde está Elizabeth, por exemplo, uma das
fundadoras da Sociedade, que parece não estar na Ilha de Guernsey há anos, e
deixou para trás uma filha, Kit, de quem Dawsey cuida como se fosse sua
própria. Escritora e investigadora, Juliet começa a buscar notícias e fazer
perguntas até conseguir as respostas que quer, e a trama do filme, mesclando
passado e presente, vai se construindo através de flashbacks que nos entristecem e nos emocionam.
Presenciamos
a morte da filha de Amelia por causa da guerra e o nascimento do sentimento de
proteção de Amelia sobre Elizabeth, porque ela não quer perder mais ninguém
para os alemães; assistimos à chegada dos nazistas na Ilha de Guernsey, quando
Elizabeth quase é presa, mas é contida por Amelia, que a protege como uma
filha; exploramos o breve romance de Elizabeth com um soldado alemão que “não
era tão ruim quanto os demais”, que resulta na gravidez de Elizabeth e na morte
do soldado; acompanhamos o momento em que Elizabeth deixa Kit sob os cuidados
de Dawsey para ajudar um escravo e acaba sendo presa e mandada embora por isso;
e vemos quando Dawsey saiu na porrada em um bar com o cara que entregou
Elizabeth e tantos outros.
Quanto mais
Juliet descobre, mais ela se sente parte dessa história toda – e,
consequentemente, mais tempo ela passa na Ilha de Guernsey, mais ela se
aproxima das pessoas, e mais ela é aceita como parte da sociedade de fato. Até
Amelia, que sempre foi a mais resistente e durona, se rende a Juliet
eventualmente, compartilha com ela a dor de tudo o que ela perdeu por causa dos
nazistas, e seu sentimento de culpa por não ter dado ouvidos a Elizabeth quando
ela dissera que o soldado por quem se
apaixonou não era como os demais. Toda a construção do filme é sensível e
bonita, apresentando tanto a dor latente do momento dos acontecimentos, nos flashbacks, quanto as cicatrizes e a
melancolia que foram deixadas por eles, nas cenas do presente.
Juliet se
compromete em encontrar Elizabeth para eles – afinal de contas, ela tem a
impressão de que a guerra ainda não acabou para aquelas pessoas, e que não
acabará até que Elizabeth retorne e Kit esteja de volta com sua mãe. No fundo,
no entanto, já sabíamos que dificilmente Elizabeth teria sobrevivido – e é
justamente a essa informação que Mark, o noivo de Juliet a quem ela pediu
ajuda, chega eventualmente. É um momento doloroso (o Dawsey indo contar tudo a
Kit imediatamente, mesmo ela tendo apenas 4 anos), mas é um momento necessário
e um fechamento do qual eles precisavam. Eles esperavam pelo retorno de
Elizabeth, e continuariam esperando eternamente… agora eles ao menos sabem o que aconteceu com ela depois que foi levada
da ilha.
Dawsey
Adams… Dawsey tem o charme de grandes personagens clássicos da literatura
mundial, como o próprio Mr. Darcy, de “Orgulho
& Preconceito”, com um quê moderno (afinal de contas, o livro de Mary
Ann Shaffer e Annie Barrows foi publicado em 2009) que o torna ainda mais
encantador… é o tipo de personagem pelo qual nos apaixonamos e por quem
suspiramos. A sua inteligência, seu cuidado, sua educação e gentileza… não é
difícil entender por que Juliet se apaixonaria por ele (afinal de contas, é um
encontro de almas, acima de tudo), e
por que, de repente, o seu “romance” com Mark parece tão desinteressante em
comparação. E quando Mark aparece sem
aviso em Guernsey, Juliet é obrigada a encarar seus próprios sentimentos e
tomar decisões.
Há um quê de
estrutura de comédia romântica nessa
reta final de “A Sociedade Literária e a
Torta de Casca de Batata” – com direito a grande gesto no fim e tudo.
Juliet e Dawsey se aproximaram de verdade durante os dias que Juliet passou na
ilha, compartilhando uma tensão mútua que rende mais de uma cena na qual parece
que tudo o que eles querem fazer é se
entregar a esse amor, mas a chegada de Mark parece bagunçar isso tudo…
Dawsey nem sabia que Juliet tinha um noivo e, na verdade, Juliet nem queria que
ele soubesse, porque ela já não queria mais ter. De todo jeito, ela acaba indo
embora de volta a Londres com Mark, mas nem um pouco disposta a aceitar seu
convite para ir com ele a Nova York. Então,
ela termina tudo com ele.
E faz o que
tinha que fazer: escrever sobre a
Sociedade Literária.
Não para
publicar, necessariamente. Ela sabe que não tem a autorização deles para isso.
Mas, ainda assim, é algo que ela precisa escrever… é, também, sua história agora, e ela não vai
conseguir escrever nada mais enquanto não colocar isso em palavras – mas
escrever sobre a Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata é o primeiro
passo para que ela escreva outras coisas relevantes, outras coisas das quais vai
se orgulhar, outras coisas que vão lhe dar prazer… então, ela escreve, por dias
e dias sem parar, e prepara duas cópias de presente. Uma delas para Sidney, seu
editor e melhor amigo, mas o avisa de que ele jamais poderá publicar aquelas
páginas. Outra de presente para a Sociedade Literária na Ilha de Guernsey, com
uma linda carta sua.
Decidida,
Juliet planeja usar o dinheiro que ganhou com seu último livro para comprar uma
casa em Guernsey, onde pode estar perto de seus amigos, se eles “a aceitarem de
volta”, enquanto Dawsey, motivado pela carta de Juliet, decide ir até Londres
para procurar por ela e dizer o que devia ter dito há muito tempo: que a ama. É a conclusão típica de um
romance clichê que aquece os nossos corações, e é uma cena linda quando os dois
quase se desencontram no porto, porque ele está descendo para procurar por ela
enquanto ela embarca rumo a Guernsey, mas isso proporciona um daqueles
reencontros épicos, emocionantes e perfeitamente românticos, com um beijo
romântico e apenas o estritamente necessário dito, porque, na verdade, eles já
entenderam o que se quer dizer…
Filme
lindíssimo e emocionante. Amei.
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