Mundo Estranho (Strange World, 2022)

“Eu não quero ser você!”

Com um quê das grandes jornadas de Júlio Verne, como a exploração de um mundo totalmente novo e diferente escondido sob a superfície em “Viagem ao Centro da Terra”, ou das missões exploratórias da USS Enterprise em “Star Trek”, “Mundo Estranho” é uma animação da Disney lançada em 2022 – não particularmente marcante ou extraordinária, mas muito mais legal do que algumas críticas me fizeram acreditar! Apesar de haver um quê previsível e talvez genérico na narrativa aventuresca de Sessão da Tarde, eu gostei da discussão familiar a respeito de expectativa e identidade, bem como da representatividade explorada com menos timidez, e as possibilidades do tal “mundo estranho” e suas “estranhezas visuais” acabam fazendo um sentido bem bacana no fim das contas.

“Mundo Estranho” acompanha a Família Clade. Há 25 anos, Jaeger Clade, um famoso e destemido explorados, arriscou a própria vida para “atravessar até o outro lado das montanhas”, já que essa era a sua missão de vida e ele não queria voltar para o povoado no qual moravam enquanto não tivesse feito isso… embora talvez movido pelo ego e pela incapacidade de pensar em uma “alteração nos planos”, Jaeger acaba seguindo adiante sozinho quando o filho, Searcher Clade, faz uma descoberta interessante à qual o pai não quer prestar atenção: uma plantinha bioluminescente que acaba se tornando a principal fonte de energia de Avalonia, transformando a maneira como as pessoas naquela sociedade vivem… graças à planta, Pando, agora eles têm luz elétrica, carros, naves…

Vinte e cinco anos depois, no entanto, Pando parece “estar perdendo sua energia”. Pequenas sementes perdem toda sua potência em questão de poucos minutos, e plantações inteiras estão se perdendo em toda a região… em breve, chegará até as Fazendas Clade, onde Searcher Clade se tornou um importante e reconhecido fazendeiro, tendo se recusado a seguir os passos do pai, “o grande explorador”. Com Pando e, consequentemente, toda a forma de vida de Avalonia em perigo, no entanto, Seacher é convocado para uma “aventura” até a fonte de toda a energia, onde eles pretendem encontrar, também, a fonte do problema e salvar a planta milagrosa… uma aventura da qual ele inicialmente não quer fazer parte, mas não tem escolha. E à qual a família se junta.

É inevitável assistir a esse tipo de narrativa e não pensar em “Viagem ao Centro da Terra”, embora o mundo descoberto sob a superfície em “Mundo Estranho” contenha, de fato, “estranhezas” inusitadas: por exemplo, tudo parece vivo… e metade das coisas, talvez, dispostas a matá-los. Razoavelmente disformes, as criaturas desse novo mundo podem ser fascinantes (a aventura de Ethan, o filho de 15 anos de Searcher, com aquela “floresta bioluminescente” me faz pensar muito em “Avatar”, que consagrou esse estilo visual) ou assustadoras (os “vilões” cheios de tentáculos me fazem pensar em criaturas saídas de contos de terror e/ou de ficção científica das décadas de 1950 e 1960, o que parece ter servido de “inspiração” para todo o filme).

Enquanto buscam a fonte do problema, os Clade se “reúnem”. Searcher reencontra o pai, Jaeger, depois de 25 anos desaparecido, e Ethan parece bastante empolgado com o avô, já que ele tem “mais alma de explorador do que de fazendeiro”. Essa é uma perspectiva muito interessante da história familiar dos Clade: quando era adolescente, Searcher se separou do pai durante uma aventura porque o pai era incapaz de ver que ele não era e nem queria ser como ele… tendo crescido traumatizado com isso, Searcher fez de tudo para ser o melhor pai possível, sem se dar conta de que, na verdade, estava repetindo a história, como o diálogo de uma discussão de pai e filho evidencia: Searcher presume que Ethan quer ser algo sem lhe perguntar, sem saber o que realmente ele quer ser…

E ele não quer ser o pai.

Não é nada inovador, mas é uma discussão interessante que faz todo o sentido e que é pertinente em várias épocas e em várias realidades. Além da questão da identidade pessoal de quem a pessoa é e quem ela quer ser, “Mundo Estranho” trata sobre a questão de expectativa, que às vezes é algo forte e massacrante na vida de um adolescente que cresce sem espaço para tomar suas decisões ou decidir quem vai ser, porque os pais fazem isso por eles… às vezes na melhor das intenções, às vezes por acreditar que “sabem mais” e estão “escolhendo o melhor para os filhos”, mas muitas vezes sem perceber como isso os limita e os sufoca. A realização de Searcher de que está sendo para Ethan exatamente o que o pai foi pra ele e ele não queria replicar é catártico.

Ainda assim, o filme não pende para um lado mais sombrio e/ou dramático. É uma discussão que poderia parecer quase superficial, e embora algumas famílias a “deixarão de lado” enquanto assistem ao filme, eu acho que ela está bem presente e é uma parte importante da construção da história dessa família… que, na verdade, se amam e “funcionam”, de sua maneira “disfuncional”. Temos bons personagens para completar esse panorama, como Meridian, uma mulher impressionante e apaixonante, e os próprios animaizinhos de estimação da família: Lenda, o cachorro sempre curioso, e Splat, uma criaturinha azul que Ethan conhece no Mundo Estranho e que eventualmente se torna sua amiga… inclusive, uma amiga que é uma verdadeira mão na roda.

Afinal de contas, ela conhece aquele mundo!

Gosto muito da construção do personagem de Ethan Clade, e como ele não é, no fim das contas, nem como o pai nem como o avô… porque ele é ele mesmo! Searcher tentou fazer com que ele fosse mais parecido com ele, tentando impedi-lo de ser mais parecido com Jaeger, mas ele é uma combinação interessante de ambos – com melhorias! Gostei daquela cena na qual ele joga um jogo de tabuleiro que faz muito sucesso em Avalonia, e que traz algumas lições importantes para a vida e para a missão imediata deles… ali, Ethan tenta ensinar ao pai e ao avô sobre como “não existem vilões” e como eles “não precisam sair matando ninguém”, porque o objetivo do jogo é que eles vivam em harmonia e aprendam a construir uma sociedade funcional com o que eles têm disponível…

Exatamente o que Avalonia vai enfrentar ao fim dessa missão dos Clade, porque eles descobrem que Pando, a planta milagrosa que fornece energia para a comunidade, é uma espécie de praga que está consumindo e matando uma criatura muito maior sobre a qual eles moram. Avalonia fica nas costas de um grande animal marinho, a jornada no subterrâneo através do “Mundo Estranho” é, na verdade, uma viagem através das entranhas desse animal até o seu coração, e “o outro lado das montanhas” os leva até a cabeça de uma “tartaruga gigante”, de quem os Clade só conseguem ver um olho, na verdade… achei interessante transformar aquelas “criaturas” e cenários do subterrâneo no interior de uma criatura viva, com elementos biológicos que fazem com que o corpo funcione…

Os tais “ceifadores”, por exemplo, são o sistema imunológico tentando eliminar Pando.

Interessante.

Eventualmente, salvar a vida da criatura na qual vivem é mais importante do que garantir a sobrevivência das plantas que geram energia elétrica e que acabariam com tudo o que é o “mundo” deles – uma possível alegoria interessante, por sinal… muitas vezes, os humanos estão tão preocupados em gerar energia e lucro que não se importam com o organismo vivo no qual moramos, que é o nosso planeta, e que estamos lentamente matando. Construído como uma espécie de “utopia”, Avalonia entende a necessidade de viver sem energia elétrica e algumas outras comodidades, para que possam continuar vivendo… e, um ano depois da expedição dos Clade, eles seguem lá, resilientes, tendo que reinventar seu modo de viver, mas dispostos a fazê-lo.

Naturalmente, eu não posso deixar de falar sobre Ethan Clade e a questão da REPRESENTATIVIDADE. Não importa quantas piadas sejam feitas a respeito de “quantos ‘primeiro personagem LGBTQIA+’ a Disney vai fazer”, porque Ethan é o primeiro PROTAGONISTA abertamente gay e com interesse romântico evidenciado em uma animação longa-metragem da Disney (e não apenas um personagem sem nome colocado no fundo da animação), e isso é algo grandioso que o filme faz com uma naturalidade impressionante e que fica LINDO de se assistir, de verdade – é uma pena que esteja em um filme com pouquíssima divulgação e que passou despercebido pela maioria do público, tanto em sua estreia no cinema quanto no streaming, quando chegou ao Disney+.

Ainda assim, como um homem gay, eu fiquei muito feliz por conhecer Ethan Clade, um adolescente de 16 anos resolvidíssimo com sua sexualidade, em uma sociedade que não parece ter comentários maldosos para fazer a respeito do fato de ele gostar de um garoto… queria viver em um mundo assim! Os amigos sabem do flerte com Diazo que estimaram que “duraria entre 3 e 5 minutos” quando eles chegam, e o pai conversa com ele sobre como “entende por que ele gosta de Diazo”, contando sobre seu primeiro crush também, e Ethan tem alguns momentos também bem fofos e bem adolescentes, falando sobre sua paixonite durante todo o filme, seja com o Splat ou com o avô… e, é claro, aquele abraço fofo de Ethan e Diazo no fim, de cabeças coladas.

Pode haver quem argumente que o filme não tratou a respeito de temas como o preconceito e a negação de direitos que nós, como comunidade LGBTQIA+, vivemos diariamente – e são, de fato, temas muito pertinentes e sobre os quais precisa se falar com crianças também, porque acredito que as crianças não nascem necessariamente respeitando ou discriminando pessoas por sua sexualidade, cor ou religião, porque isso é ensinado e construído socialmente, então é preciso, sim, falar sobre isso com crianças. No entanto, quando o filme trata a homossexualidade do Ethan com naturalidade e sem “problematizar”, o que eles estão dizendo, na verdade? Estão dizendo justamente que não há nada ali que alguém precisa ver como um “problema a ser superado”.

Infelizmente, vivemos em uma sociedade repleta de pessoas muito preconceituosas que ainda veem “problemas” em relações homoafetivas, tanto que a comunidade LGBTQIA+ sofre preconceito diariamente e é morta diariamente, e é isso o que torna a discussão a respeito da homofobia e da transfobia, por exemplo, necessária. Ao não fazer isso, no entanto, “Mundo Estranho” fortalece aquela questão comentada em algum momento no filme a respeito de Avalonia ser uma “utopia”: em um mundo ideal, a “diferença” (a sexualidade de Ethan, a cor de Meridian, a deficiência de Lenda) não seria um tema, não seria “razão de problema”, de preconceito. Não é, no fim das contas, nesse tipo de mundo que nós queremos viver? Em que cada um é respeitado por quem é?

Também há aquele típico comentário preconceituoso e conservador que diz: “Ah, mas como eu vou explicar isso para uma criança?” (que, inusitadamente, não surge quando existe um romance hétero em animações infantis), e a resposta é simples: você não explica. E sabe por quê? Porque não há nada a ser explicado: Ethan gosta de Diazo e pronto, é só isso. Ethan é um garoto que gosta de outro garoto, e está tudo bem você gostar de quem você gosta. Crianças LGBTQIA+ existem, mesmo que sejam constantemente silenciadas e apagadas. Um garoto gay, por exemplo, muitas vezes passa parte da sua vida escondendo e reprimindo o que sente ou, pior, negando e “tentando não sentir” o que é inevitável, porque isso é parte de sua identidade, de quem ele é.

Sinto que muitas vezes parte da nossa vida, como pessoas LGBTQIA+, é negada/roubada por sermos quem somos. Eu já comentei em outras ocasiões: eu não tive um romance de escola, por exemplo, eu não aceitei que eu gostava de meninos até ter, sei lá, uns 18 anos de idade… muita coisa que eu “devia ter vivido antes” veio atrasada pra mim, infelizmente. Essa é a realidade de muita criança LGBTQIA+ em uma sociedade heteronormativa. Ainda é uma utopia, “Mundo Estranho” fala sobre isso. Mas a partir do momento em que a sociedade para de reprimir esses sentimentos e essa realidade LGBTQIA+, a criança se sente à vontade para ser quem ela é… ela entende que, se é um menino e tem sentimentos por outro menino, por exemplo, está tudo bem, é quem ela é, é sua sexualidade.

E é aí que a representatividade importa e faz toda a diferença.

Mas enfim… esse é um tema que, para mim, levanta uma série de reflexões e possíveis discussões, e que é apenas um elemento do filme – e nem é central, como eu comentei, porque é muito mais sobre a relação de pai e filho do que qualquer outra coisa, e consegue desenvolver bem essa proposta ao longo da trama. Como filme, de modo geral, “Mundo Estranho” funciona, embora não se sobressaia em seu gênero. Como aventura através de “um novo mundo”, talvez falte inovação; como filme de trauma geracional, talvez outras animações da própria Disney/Pixar tenham feito isso de forma mais competente, como “Red: Crescer é uma Fera”. Mas “Mundo Estranho” é uma aventura colorida e com alguns personagens cativantes, que deve agradar ao público a que se destina, e tem seus méritos!

Brilhante? Não. Mas bacana!

 

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