Jogos Vorazes (The Hunger Games, 2012)

“Hope. It is the only thing stronger than fear”

“Jogos Vorazes” é uma das minhas sagas literárias e cinematográficas favoritas. Ambientada em um futuro distópico com direito a uma crítica social ferrenha, a saga mescla elementos de ação, drama e ficção científica com uma destreza impressionante. O filme de 2012, protagonizado por Jennifer Lawrence e Josh Hutcherson, e dirigido por Gary Ross, é uma adaptação do livro homônimo de Suzanne Collins, que foi lançado em 2008 – e se tornou um fenômeno. Com um tom duro, melancólico e profundamente sincero, “Jogos Vorazes” critica a diferença de classes, a opressão, a espetacularização da mídia, e é um verdadeiro tratado sociológico repleto de pontos importantes que levantam discussões e inevitavelmente nos deixam reflexivos depois de assistirmos.

Após a Guerra entre a Capital de Panem e os 13 Distritos, a Capital instituiu os Jogos Vorazes, como uma maneira de punir os rebeldes e lembrar a guerra para que ela nunca se repetisse: todo ano, dois “tributos” entre 12 e 18 anos são enviados de cada um dos distritos sobreviventes para lutarem até a morte em uma arena na Capital. É uma política opressora na qual a Capital se apoia para constantemente recordar aos Distritos “quem é que manda”, quem é mais forte. O horror proporcionado pelo conceito dos Jogos Vorazes é garantido pelos pontos de vista destoantes: de um lado, os Distritos subjugados e sendo controlados violentamente o tempo todo, enviando seus filhos para a morte certa; de outro, a Capital, que vê tudo aquilo como um verdadeiro espetáculo.

Um show.

Todo o primeiro ato do filme se concentra na construção dicotômica dessas duas realidades. Através de Katniss Everdeen, estamos no Distrito 12, o mais pobre e o mais afastado dos Distritos dePanem, um lugar austero e sem cor que é invadido pela espalhafatosa Capital, que trata o dia da Colheita como um show e o fato de dois jovens serem levados para os Jogos Vorazes como uma “oportunidade”. O excesso da Capital é proposital para causar, no espectador, a mesma estranheza que causa em Katniss e Peeta: é uma realidade completamente diferente da deles. E é particularmente nojento ver crianças da Capital brincando com espadas, quando a morte é algo tão certo para os cidadãos dos Distritos, por causa de algo que aquela mesma Capital instituiu e perpetuou.

Jennifer Lawrence entrega para a sua Katniss Everdeen toda a intensidade e a complexidade que a personagem exige. Quando isso tudo começa, Katniss não quer começar uma revolução, não quer ser símbolo de nada, não quer desafiar a Capital… ela só quer proteger a irmã, Primrose, de 12 anos, que acabou de ser sorteada. Ela não tem outra escolha que não se entregar como voluntária, em uma das cenas mais icônicas e marcantes do cinema. Josh Hutcherson, por sua vez, imbui o seu Peeta Mellark de todo o charme, carisma e inteligência que o personagem exige… ele não é apenas fofo para conquistar o público como conquista patrocinadores, mas ele é um estrategista nato que parece ter nascido pronto para o reality show, e sabe o que está fazendo.

Ambos vivem momentos perfeitamente MARCANTES antes da entrada na arena. Katniss é retratada na televisão como algo diferente de quem ela realmente é, mas ela chama a atenção com o fogo em seu vestido, por exemplo; sua grande cena, no entanto, fica para o momento em que eles se apresentam aos patrocinadores para serem avaliados e, quando percebe que não tem a atenção da Capital, Katniss atira uma flecha na maçã do porco assado em volta do qual eles estão… uma verdadeira sensação! Peeta, por sua vez, brilha mesmo em frente às câmeras, e ele sabe manipular o público para prestar atenção nele perfeitamente, quando ele confessa estar apaixonado por uma garota que nunca olhou para ele, e diz que “vencer os Jogos não vai ajudar em nada, porque ela está ali com ele”.

Ele sabe o que o público quer!

Acho muito interessante como “Jogos Vorazes” prolonga a sua primeira parte antes da chegada à arena, gerando expectativa – e perceberemos, ainda nesse filme, mas em toda a saga, de um modo geral, como a arena não é o que de fato importa… é o que está acontecendo antes dela, depois dela, durante os Jogos e por causa dela. Tudo é extremamente simbólico, uma grande alegoria de coisas muito maiores, e é justamente por desconhecer essa grandeza, de certa maneira, que Katniss é tão “perigosa” para a Capital. Ela faz o que o Presidente Snow temia que alguém fizesse: ela é uma fagulha, mas se não for contida, ela pode gerar um incêndio. Ela é apenas um assobio, mas a partir do momento em que os tordos ecoam seu som, esse assobio se torna vários.

É justamente por isso que os tordos são tão simbólicos em “Jogos Vorazes”. Katniss carrega consigo um broche de tordo que ela tinha comprado de presente para Prim no dia da Colheita, e é muito bonito que quem ensine Katniss a usar os tordos como uma forma de comunicação seja Rue, a garotinha de 12 anos do Distrito 11 que faz com que Katniss se lembre da irmã… provavelmente é por isso que ela se afeiçoa tanto a Rue e queira tanto protegê-la durante algum tempo na arena, até que Rue caia em uma armadilha e Katniss mate outro tributo para salvá-la, mas não a tempo. A morte de Rue é, sem dúvidas, o momento mais doloroso do primeiro “Jogos Vorazes”, porque vemos uma vida inocente morrendo nos braços de Katniss, e a vemos gritar silenciosamente.

Aqui, Katniss age exatamente como o Presidente Snow temia… Snow não gosta de Katniss desde sempre, e percebemos isso quando ele conversa com Claudius enquanto cuida de suas rosas (!), e comenta sobre como a única coisa mais forte que o medo é a esperança – e por isso os Jogos Vorazes têm um vencedor; a esperança é uma fagulha, no entanto, e ela precisa ser contida. Quando Katniss dá a Rue uma espécie de funeral e envia uma “mensagem” ao seu Distrito em um gesto simples, Katniss humaniza a morte da colega… ela lembra aos espectadores que aquelas 24 crianças colocadas na arena são vidas humanas, e mais uma acabou de ser tirada. E essa é a fagulha que “coloca fogo” no Distrito 11, quando uma verdadeira revolução começa por lá e é rapidamente contida.

Não é à toa que Katniss é chamada de “Garota em Chamas”.

Katniss só não é morta pelo Idealizador dos Jogos naquele momento porque Haymitch é, provavelmente, tão esperto quanto o Peeta, e consegue convencer Claudius de que matar a Katniss a transformará em uma mártir, e ela pode servir de espetáculo se eles venderem a narrativa de “amantes desafortunados”. Assim, Claudius anuncia uma “mudança” nas regras dos Jogos Vorazes, dizendo que dois tributos podem vencer, se forem do mesmo Distrito… é assim que Katniss e Peeta se unem, e formam uma das melhores duplas e dos melhores casais da ficção; dentro de todo esse caos e essa intensidade, os dois verdadeiramente se importam um com o outro e sonham, a partir daquele momento, com a possibilidade de sobreviverem e voltarem para casa juntos.

A dinâmica de Peeta e Katniss é desenvolvida de uma maneira tão brilhante que chega a ser surpreendente. “Jogos Vorazes” é muito mais um drama e uma crítica social do que um romance, mas a história consegue encaixar um possível romance sem que ele soe forçado. Em parte, sabemos que uma parte daquela proximidade, que começou já nas entrevistas antes da arena, é uma estratégia inteligente para conseguir patrocinadores, que podem salvar as suas vidas com presentes que enviam para a arena; por outro lado, no entanto, Peeta realmente parece sempre ter prestado atenção em Katniss no Distrito 12, e Katniss tem uma gratidão imensa pelo dia em que ele lhe jogou um pão… por isso, quando eles se conectam, nós acreditamos naquilo.

E compramos a ideia de torcer por eles.

Em termos de ação, o filme também se sobressai, criando um suspense incrível, batalhas intensas e bem-coreografadas, e sequências inteiras de nos deixar apreensivos. É forte, mas propositalmente forte, porque o horror dos “Jogos Vorazes” não é algo para se apreciar, mas algo para chocar e causar desconforto… a maneira como a Capital reúne crianças e adolescentes para se matarem, como uma maneira de atestar o seu poder sobre o Distrito e de “divertir” os moradores da Capital é algo que causa angústia e inquietação, e é para causar. Quando vemos o banho de sangue em torno da Cornucópia na abertura dos jogos, a dolorosa morte de Rue ou o duelo final de Peeta e Katniss contra Cato, antes que ele seja derrubado e devorado pelos Bestantes…

É um lembrete do quanto aquilo é terrível.

A conclusão desse primeiro “Jogos Vorazes” é uma bela introdução à revolução… quando só restam Katniss e Peeta na arena e a Capital recua, dizendo que “só pode haver um vencedor”, Peeta está disposto a se sacrificar, mas Katniss pede que ele confie nela. Até então, Peeta tinha sido o estrategista, enquanto Katniss agira como um futuro símbolo rebelde sem pensar nisso, humanizando a morte de Rue, por exemplo; naquele momento, no entanto, Katniss sabia o que estava fazendo… ela deliberadamente desafiou a Capital, sugerindo que ela e Peeta comeriam as amoras venenosas e, consequentemente, a 74ª edição dos Jogos Vorazes chegaria ao fim sem um vencedor. A Capital teve que agir depressa e pensar o que causaria menos levante nos Distritos.

E, assim, os dois saem vitoriosos. Ou quase isso. Quão vitoriosos eles podem ser? Tudo isso é uma discussão importantíssima que permeia todo o filme, através daquele diálogo entre Peeta e Katniss na noite anterior ao início dos Jogos, quando ele diz que não quer que eles o transformem em alguém que ele não é, ou através do próprio personagem de Haymitch, que ganhou uma edição dos Jogos Vorazes no passado, e vive com os fantasmas desse trauma até hoje… supostamente, nas palavras exageradas e utópicas da Capital, Katniss e Peeta retornarão para o Distrito 12 como “heróis”, “banhados em glória e riquezas”, mas que tipo de vida eles podem ter de agora em diante, de fato? Eles foram apenas peças no grande jogo da Capital, como Peeta não queria ser.

Além disso, é claro, a Capital está furiosa… o “desafio” de Katniss pode ter sido, finalmente, mais do que uma fagulha que eles podem conter, e o Presidente Snow sabe perfeitamente disso. Haymitch dá conselhos a Katniss sobre como se comportar depois dos Jogos para “acalmar” a Capital, como não fazer parecer que foi um desafio, e Katniss até segue os seus conselhos, mas esse é o detalhe interessante a respeito do fogo: a partir do momento em que ele se espalha, é muito difícil conter. A Garota em Chamas, o Tordo, foi um símbolo mesmo sem querer e sem perceber… enquanto a Capital sempre gerou medo, Katniss deu aos Distritos esperança; e é como o Presidente Snow bem disse: a esperança é a única coisa mais forte do que o medo. Certo?

 

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