Ainda Estou Aqui (2024)
“Sorriam”
Protagonizado
por Fernanda Torres no papel de Eunice Paiva e dirigido por Walter Salles, “Ainda Estou Aqui” não é apenas um filme
sobre a família do outrora deputado federal Rubens Paiva após a sua prisão e
consequentemente “desaparecimento” durante a ditadura militar, mas um recorte
que nos permite lançar um olhar para essa parte vergonhosa e revoltante da
história brasileira que, como o filme diz, não pode ser esquecida… porque não
podemos permitir que ela se repita. Sabe o que é o mais triste desse filme? É
que não é uma obra de ficção, não somos agraciados pela sensação catártica de
que as pessoas pagaram pelo mal que fizeram… o fascismo, como bem sabemos,
segue sendo uma ameaça constante e presente e, por isso, precisamos estar
alertas.
Eu me senti
muito mal assistindo ao filme, eu deixei a sala de cinema com uma sensação
estranha de sufocamento e de angústia, e essa é a intenção do filme: é gerar
desconforto e inquietude para que estejamos atentos, para que pensemos sobre
isso, para que discutamos com aquelas pessoas que se recusam a chamar o que
aconteceu em 1964 de “golpe”, que se recusam a reconhecer as atrocidades
cometidas pela ditadura militar, que se recusam a admitir que 8 de janeiro de
2024 foi, também, uma tentativa de golpe. Paradoxalmente, com essa sensação de
angústia também vem uma sensação de acolhimento, como se o filme estivesse nos
dizendo: “Nós também sabemos. Você não
está sozinho. Juntos, nós somos resistência”. E isso é bom.
O filme
começa no fim de 1970, nos apresentando à família de Rubens Paiva, um
engenheiro que fora eleito deputado federal pelo PTB em 1962, mas, depois do
golpe de 1964, foi cassado e se exilou. Quando retorna ao Brasil, Rubens Paiva
segue exercendo a sua profissão e proporcionando à esposa e aos cinco filhos
uma boa vida no Rio de Janeiro, até o momento em que ele é levado pela ditadura
militar… e, com isso, a vida da família vira um inferno – um inferno pelo qual
tantas pessoas passaram nessa mesma época. Sem notícias quaisquer de Rubens
Paiva, Eunice, sua esposa, e Eliana, sua filha mais velha, são também lavadas
para algum lugar secreto para “responder a perguntas”, e esse é o momento em
que Eunice desperta para algo: ela não é
alheia a isso tudo.
As cenas são
revoltantes por inúmeros motivos. Assistir ao tratamento que Eunice Paiva
recebe ao longo de dias presa é
enervante, mas é ainda mais preocupante pensar que essa trama parte de um livro
autobiográfico escrito por Marcelo Rubens Paiva, seu filho, e nós não temos
certeza do quanto ela de fato contou
para as crianças sobre o que aconteceu… afinal de contas, a vemos guardar muito
para si durante todo o filme! Também parece absurdo pensar na maneira como
Rubens Paiva foi assassinado em um quartel, em janeiro de 1971, e depois o
exército simplesmente passou a negar
a sua prisão. O filme faz um trabalho competente ao evidenciar a maneira como
qualquer pessoa que divergisse de qualquer maneira não era tratada como ser humano.
Com a prisão
e o assassinato de Rubens Paiva, Eunice se tornou uma figura importante na
busca pela verdade e por justiça, até o fim da ditadura militar e depois dela.
É impressionante como Eunice Paiva lutou para que a prisão de seu marido fosse
reconhecida oficialmente e, depois, para provar que ele foi assassinado dentro
de um quartel, e como o fez enquanto defendia a família e protegia todos os
seus filhos a todo custo. Fernanda Torres brilha em cenas fortíssimas pelas
quais a personagem se divide, e eu acho que o que mais impressiona em sua
atuação é a capacidade que ela tem de fazer com que entendamos o que ela está sentindo, sem que ela precise dizer, sem
que ela precise esbravejar… está tudo em seus olhos, e seus olhos dizem MUITO.
Ao saber
sobre a morte de Rubens, Eunice leva os filhos de volta para São Paulo – eu
imagino que a cena dela devolvendo o dente para a filha o dente que ela
enterrara na areia da praia com o pai é extremamente simbólica como despedida –, e ela demora 25 anos para
conseguir, finalmente, um atestado de óbito que oficializa o que ela sabe há
tanto tempo: que seu marido foi um preso
político durante a ditadura militar e que ele foi assassinado. E ao pegar
esse atestado de óbito em mãos e ao ser fotografada pela imprensa ali presente,
Eunice o faz sorrindo; tanto porque aquela é uma inexplicável “vitória”, quanto
porque ela sempre acreditou nisso de manter-se firme, de manter o sorriso no
rosto… temos uma cena em 1971 sobre isso que é de arrepiar!
Duas cenas
me impactam particularmente em “Ainda
Estou Aqui”. É verdade que o filme é repleto
de cenas marcantes, mas essas duas trouxeram discussões que permaneceram
comigo: a primeira, quando Eunice descobre por
que Rubens fora preso, e um de seus amigos fala sobre o que cada um deles
fazia para ajudar as pessoas que estavam sendo perseguidas pela ditadura, cada
um fazendo o que podia, porque “não dava para não fazer nada”; a segunda,
quando Eunice é questionada sobre haver preocupações mais urgentes depois da
redemocratização, e ela responde falando sobre como os crimes cometidos durante
a ditadura precisam ser reconhecidos, e as pessoas precisam ser punidas… até
porque estamos fadados a repetir a história que não conhecemos.
Por isso,
precisamos, sim, falar sobre isso, trazer isso à tona, incomodar.
É justamente
nesse sentido que o filme ainda nos leva uma última vez ao futuro, nos trazendo
para 2014, quando Eunice Paiva é interpretada brevemente por Fernanda
Montenegro – e, novamente, a personagem fala com o olhar. É fortíssima a cena de Eunice parada em frente à
televisão enquanto o jornal faz uma matéria sobre a ditadura militar e Rubens
Paiva é citado e uma foto sua é exibida… aquele breve momento de lucidez e de
reconhecimento em uma alma tão cansada por tudo o que teve que enfrentar, e nós
sentimos toda a dor da personagem naqueles segundos em seu olhar. 2014 foi ano
em que a Comissão da Verdade, graças à Dilma Roussef, investigou e trouxe à
tona violações dos direitos humanos, especialmente durante o período da
ditadura militar.
Como eu
comentei ao iniciar esse texto: a parte
mais triste de tudo é saber que isso não chegou ao fim… ainda que com a
redemocratização em 1985 e com a Comissão da Verdade em 2014, presenciamos
recentemente (e constantemente) ataques à democracia e um flerte perigoso com o
fascismo que ameaça nos jogar de volta à realidade apresentada em “Ainda Estou Aqui”. E é por isso que
lutamos, que resistimos, que estudamos: para que a história não se repita. O
texto final do filme, sobre como os responsáveis pelo assassinato de Rubens
Paiva apontados não foram presos nem
punidos é um lembrete irônico de como nossa luta nunca chega ao fim, e
materializa algo que Eunice pincelara a respeito de impunidade e os perigos
dela. Um filme importantíssimo!
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