Maré Alta (High Tide, 2024)
“Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro, terra, amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita, Deus, que eu morra
Sem que eu volte para lá”
Canto de Regresso
à Pátria
Oswald de Andrade
Escrito e
dirigido por Marco Calvani e protagonizado por Marco Pigossi, “Maré Alta” é um filme sobre encontrar o seu caminho de volta… e não
o caminho de volta ao lugar onde você nasceu, mas o caminho de volta a você mesmo – àquela versão sua que
está tão escondida que talvez você nunca nem tenha chegado a conhecer de fato.
Com beleza, poder e melancolia, o filme nos apresenta a Lourenço, um homem
vivendo em Provincetown, nos Estados Unidos, com um visto de turista que está
prestes a expirar, e um monte de coisas do passado para resolver… ou para
superar. É um filme tão sensível quanto doloroso,
que fala sobre traumas, sobre medos, sobre sonhos e incertezas. Um filme sobre
encontrar suas cores, se encontrar, e permitir que a vida o abrace.
Que a vida o impulsione à frente.
Lourenço
tinha um diploma de contabilidade no Brasil, mas não pode trabalhar legalmente
nos Estados Unidos porque seu visto é de turista – e, com o visto prestes a
expirar, ele não quer ir embora… talvez porque ele goste mesmo daquele lugar;
talvez porque, no fundo, ele ainda espera que Joe retorne. Joe é, agora, um
ex-namorado com quem Lourenço deixou o Brasil, porque tinha a sensação de que
“sua vida estava acontecendo sem ele, em outro lugar”, mas que o abandonara há
algum tempo. Secretamente, ou talvez nem tanto, Lourenço ânsia pelo retorno de
um homem para quem ele liga e nunca o atende… um homem para quem deixa recados,
mas que nunca lhe retorna… um homem que o prende a um ponto do passado e o impede
de viver.
A vida de
Lourenço é, na verdade, bastante solitária,
e o filme faz um belo trabalho traduzindo isso visualmente, especialmente nas
cenas em que Lourenço está sozinho na praia… que é justamente onde ele encontra
Maurice, o homem que pode mudar a sua vida. E não é algo necessariamente
mágico, não é algo como “o amor da sua vida batendo à porta”. Talvez seja,
talvez não, mas eu sinto que “Maré Alta”
é sobre mais do que um amor único: é sobre aquelas pessoas que passam pela sua
vida e a transformam… aquelas pessoas que nós precisamos conhecer, por um motivo ou por outro. Talvez seja alguém
que vai ficar por aqui para sempre… talvez seja alguém que nunca mais voltemos
a ver. A importância delas em nossas vidas segue ali, no entanto.
A
aproximação de Lourenço e Maurice é curiosa… há algum fascínio, há inevitável
desejo, mas também há aquela trava que segura Lourenço no passado. Os diálogos
entre eles são, na minha opinião, a melhor parte de “Maré Alta”. Gosto particularmente do diálogo em que eles falam
sobre “medos”, e Lourenço diz que o seu maior medo é “Deus”, porque ele vem de
uma cidade pequena e de uma família religiosa que o ensinou a temer o
julgamento de Deus e a punição após a morte, e há tanta leitura possível a
partir dessa fala… Lourenço é a representação de tantas pessoas LGBTQIA+ que
cresceram silenciadas, constantemente podadas, ensinadas a ter vergonha de quem
são, a esconder o que sentem… pessoas que
não tiveram a oportunidade de ser elas mesmas até muito tarde.
Sinto que a
construção do personagem de Lourenço é excelente, porque tudo isso, que vamos
desvelando no decorrer do filme, está presente na primeira vez em que ele e
Maurice fazem sexo, por exemplo. Parte da insegurança de Lourenço tem a ver com
o fato de que ele nunca antes se permitira,
e é uma virada de chave lindíssima quando Maurice ignora o fato de Lourenço
dizer que “ele não precisa se preocupar com ele” (Lourenço acostumado a
negar-se seu próprio prazer) e dá prazer a Lourenço… inclusive, uma cena linda,
e uma cena importante para como o relacionamento se desenvolve depois. A
próxima cena íntima de Lourenço e Maurice, por exemplo, é repleta de uma
intimidade e de uma conexão tão profunda que é algo poético… quase
transcendental.
Excitante,
bonita, envolvente.
Maurice
também traz à trama toda uma outra narrativa de não-pertencimento. Enquanto
Lourenço é literalmente a representação do estrangeiro,
Maurice é uma pessoa cuja sociedade faz com que ele se sinta “estrangeiro em
seu próprio país”. Em uma conversa importante com Lourenço no restaurante,
Maurice pede que ele olhe em volta e veja quantas
outras pessoas negras estão ali… nenhuma. Durante toda sua vida, ele sentiu
que olhavam para ele como se ele estivesse num lugar que não era seu. Em uma
das cenas mais revoltantes do filme, Maurice aparece na casa de Lourenço
procurando pela carteira que derrubara ali na noite anterior, e ele é parado
pelo senhorio, em uma demonstração de racismo – igual às que Maurice já
enfrentou tantas vezes em sua vida.
Em algum
momento, tudo dá terrivelmente errado na vida de Lourenço… o advogado a quem
Scott o apresentaria é um homem conservador, abusivo e preconceituoso (a fala
dele menosprezando algumas das letras da sigla LGBTQIA+ é repugnante!), e
Lourenço parte para uma festa, porque sabe que não vai conseguir nada ali, e a
festa lhe traz a notícia de que Joe está prestes a se casar com outra pessoa.
Lourenço, então, precisa lidar com essa inevitável frustração, e o faz de
maneira extrema, o que acaba, por sua vez, afastando também Maurice, em seus
últimos dias em Provincetown, porque ele está prestes a se mudar por causa de
uma bolsa para a qual se inscrevera e para a qual finalmente foi chamado… uma
avalanche de situações.
As cenas do
“clímax” de “Maré Alta” são
fortíssimas. Antes de partir, Maurice aparece para se despedir de Lourenço, em
uma cena que traz muita emoção e sinceridade, mas, também, expressa tudo o que
não foi dito e não foi vivido… Lourenço sente que a sua vida está uma m*rda, e
que ele está perdendo a única coisa que
fez sentido nos últimos dias, mas não há como ir atrás dele: Maurice
partira em uma balsa antes que ele pudesse chegar ao porto. O declínio dali em
diante é sufocante: a discussão com Scott, o babaca do Bob, a corrida para a
praia… o filme constrói uma tensão que nos deixa apreensivos e inseguros, sem
saber o que será de Lourenço, até que
percebamos, com certo alívio, que aquela sequência casa com a sequência inicial
do filme.
E, então,
estamos de volta ao início. Em mais de um
sentido.
Lourenço recomeça.
Gosto muito
do final de “Maré Alta”, e ele é
muito menos triste do que eu comecei
a antecipar conforme o filme avançava e, especialmente, conforme se aproximava
do fim… nós não sabemos o que será do futuro de Lourenço, embora ele tenha
finalmente tido coragem de ir à clínica com o amigo e esteja trabalhando com
Miriam dentro da sua área de formação, mas de uma coisa nós sabemos: ele virou uma página. Lourenço não podia
ser feliz, nem consigo mesmo nem com outra pessoa como o Maurice, enquanto ele
ainda estivesse preso ao passado sufocante de sua mãe religiosa e apegado à
esperança de que Joe um dia regressaria. Ele sofreu, ele chegou ao limite, mas
ele enfrentou o que precisava enfrentar para deixar isso para trás e rumar ao
futuro sem amarras.
Finalmente livre. Quiçá, finalmente feliz.
Para reviews de outros FILMES, clique aqui.
Visite também nossa página: Produções
LGBTQIA+
Comentários
Postar um comentário