O Auto da Compadecida 2 (2024)

“Não sei, só sei que foi assim”

Baseado na obra de Ariano Suassuna, com direção de Guel Arraes e protagonizado por Matheus Nachtergaele e Selton Mello, “O Auto da Compadecida” foi uma minissérie em quatro episódios lançada em 1999 e, depois, compilada na forma de filme, em 2000, se tornando um dos maiores e melhores clássicos do cinema brasileiro. Durante anos, “O Auto da Compadecida” foi assistido, reassistido e amado por um país que reconhece com facilidade nomes como “João Grilo” e “Chicó”, e falas como “Não sei, só seu que foi assim”. Mais de 20 anos depois, então, somos convidados a retornar a Tapeorá, reviver a história de como João Grilo retornou da morte por intercessão de Nossa Senhora e reencontrar o maior mentiroso e o maior esperto que essa cidade já viu.

Infelizmente, “O Auto da Compadecida 2” não tem o impacto que o primeiro filme tem – e nós sabíamos que não teria. Essa onda de usar a nostalgia para trazer grandes obras do passado de novo é uma faca de dois gumes: por um lado, podemos ganhar sequências inteligentes e inesperadas; por outro, podemos ganhar uma estranha repetição fora do tom do que deu certo no passado. Eu não acho que “O Auto da Compadecida 2” tenha sido de fato ruim, e não me arrependo, de modo algum, de ter ido conferir no cinema… mas eu tive a sensação clara de que foi um filme feito para arrecadar dinheiro com base em um grande nome. Sim, eu sei que essa é basicamente a definição de uma “sequência” no cinema, mas também sei que não precisa ficar sempre tão evidente enquanto assistimos

“O Auto da Compadecida 2” é fraco e, paradoxalmente, repete muita coisa do primeiro, ao mesmo tempo em que destoa dele. Acho que a própria ambientação do filme causa certa estranheza porque a direção artística tinha ideias diferentes… enquanto o primeiro filme era aconchegante e passava uma sensação de realidade a Tapeorá, tudo parece muito artificial aos olhos nesse segundo filme, quando pensamos em cenários e (falta de) locações. E o mais triste é que não é um artificial proposital que visa uma aproximação com o teatro e gera algo único, bonito e que atravessa linguagens, como é o caso de “Hoje é dia de Maria”, por exemplo, mas algo que parece não combinar com o que vimos antes, e acaba por prejudicar a imersão do espectador.

Mas falemos de história… 20 anos se passaram desde “O Auto da Compadecida”, e as coisas não são mais como antes, nem como esperávamos que fossem depois da conclusão do filme. João Grilo saiu pelo mundo, acabou na capital, e Chicó ficou para trás, esperando a Rosinha que o abandonara, fazendo um pouquinho de dinheiro com os versos que escrevera sobre o retorno de João Grilo à vida por intercessão da Compadecida. Confesso que essa “separação” do trio me deixou com um gostinho amargo na boca, mas é o que o roteiro inventou para impulsionar a narrativa da sequência, e para não ser julgado por eventuais explicações que precisavam ser dadas. E a história começa de verdade quando João Grilo retorna para Tapeorá para reencontrar o amigo.

A dinâmica de João Grilo e Chicó sempre foi a alma de “O Auto da Compadecida”, e o filme funciona quando os dois estão juntos – sendo tão boa quanto fora outrora ou não. A chegada de João Grilo movimenta a vida tranquila, mesmo com dificuldades, de Chicó, porque João Grilo não é daquelas pessoas que ficam paradas, sem aventuras… ou sem tentar tirar vantagens. É assim que João Grilo se vê às voltas com os dois maiores inimigos da cidade, os dois homens que estão concorrendo à prefeitura: de um lado, o Coronel Ernani, que compra votos distribuindo água do “seu” poço durante a seca; de outro, Arlindo, detentor do monopólio da comunicação e do comércio em Tapeorá. Duas pessoas de caráter duvidoso e ambição grandiosa que pode ser manipulada por João Grilo.

Gosto de estar de volta às histórias de ambos… gosto de ouvir os absurdos mentirosos e inocentes de Chicó quando conta histórias sobre como a sua cabra “morreu de comida”, por exemplo, ou como seu papagaio vermelho regeu um coral de papagaios em homenagem à Nossa Senhora; e também gosto de acompanhar os absurdos menos inocentes de João Grilo, que tem uma habilidade espantosa para conseguir o que quer, conquistando, sem custo algum, uma estátua em sua homenagem em Tapeorá, paga por Ernani, bem como um programa na rádio de Arlindo, o que só aumenta a sua popularidade com os fiéis da cidade – tanto que ele mesmo poderia vencer a eleição para a prefeitura, se isso não fosse custar demais para ele, com Ernani e Arlindo querendo seu couro…

Chicó se engraçando com a Srta. Clarabela, filha do Coronel Ernani, ameaça ser uma repetição fajuta de seu romance com Rosinha no primeiro filme, mas, felizmente, o retorno da própria Rosinha enterra essa trama depressa, e de maneira surpreendentemente madura – uma delícia a cena da Rosinha poderosa colocando a Clarabela para fora, porque “agora ela está de volta”. E toda a questão de “ela ter abandonado o Chicó” se esclarece depressa, também, quando descobrimos que ela deixara para ele um bilhete o convidando a fugir com ela, e o fizera assim para “dar-lhe a liberdade de decidir”, mas Chicó nunca ficou sabendo, porque ele não sabe ler… foram anos de uma separação desnecessária, mas que Chicó e Rosinha conseguem superar de maneira rápida.

Quando as ações de João Grilo resultam em sua segunda morte – mesmo depois de ele ter resolvido os problemas entre Ernani e Arlindo –, temos uma sequência de João Grilo sendo julgado e pedindo pela intercessão de Nossa Senhora, o que era inevitável para que “O Auto da Compadecida” exista, mas também acaba por soar repetitivo… e, infelizmente, muito mais simples do que no filme original. Afinal de contas, agora temos o próprio Matheus Nachtergaele interpretando, além de João Grilo, o Jesus e o Diabo, e Taís Araújo assume o papel de Nossa Senhora, a “Compadecida”, que pertencera a Fernanda Montenegro no filme original. São, portanto, apenas dois atores em cena durante toda a sequência, em uma igreja mais vazia do que antes.

É muito menos divertido, muito menos icônico e muito menos genial do que foi originalmente, e é uma pena. E, de certa maneira, isso resume o filme. A relação entre João Grilo e Nossa Senhora é, ainda, o destaque aqui, e ela está maravilhosa como advogada, com uma convicção que nem mesmo o próprio João Grilo tem de sua inocência e de suas intenções, mas ela consegue que Jesus dê uma nova chance a João Grilo, o mandando de volta à Terra, mas, dessa vez, com um propósito diferente: dessa vez, é um teste, para ver como ele vai reagir à fé das pessoas em sua segunda ressureição. E acho que o João Grilo se sai bem, mesmo sem lembrar-se de nada do que aconteceu no “além”: dessa vez, ele não se aproveita da fé de ninguém por benefício próprio…

Ele apenas parte para longe.

“O Auto da Compadecida 2” não é um filme ruim… mas também há coisas demais que me impedem de dizer que ele é um filme bom. Isso não quer dizer que não tenha seus bons momentos e que eu não tenha gostado de rever João Grilo e Chicó – e minhas cenas favoritas ficam para a despedida da dupla, os “ciscos” que caem nos olhos de ambos, e o fato de que há claramente algo que extrapola a tela naqueles momentos… de certa maneira, é um reencontro de Matheus Nachtergaele e Selton Mello, e eu imagino que exista emoção real em ambos por estarem de volta a esses personagens e a essas histórias. Não é um grande marco, e o próprio filme faz uma piada com isso quando Rosinha diz que “sempre vai ter gente que prefere a primeira história”.

Eu sou um desses.

 

Para a review de “O Auto da Compadecida (2000)”, clique aqui.

 

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