O Doador de Memórias
Uma das minhas melhores memórias.
O Doador de
Memórias é uma história profundamente intensa repleta de reflexões e
densidade, e eu estava ansioso para vê-la no cinema. O livro, que eu li em
apenas dois dias, me fascinou de uma maneira diferente – eu acabei melancólico,
triste, mas tão apaixonado que eu queria voltar e ler de novo. Eu parecia
conhecer Jonas e Gabriel como ninguém mais, e eu amava aqueles dois. Eu me diverti, eu me emocionei, e eu fiquei
revoltado enquanto fazia todos os questionamentos levantados por Lois Lowry em
seu livro. Eu pensava na felicidade, no amor, na “sociedade perfeita”, e tudo
parecia fazer muito sentido para mim. E então eu fui ao cinema…
Confesso que, pensando agora, talvez eu só tenha
entendido tão bem o filme por ter lido o livro. Infelizmente o tempo é curto e
muita coisa acontece depressa, e mesmo que tudo o que deve estar esteja lá, o
filme não nos dá tempo para processar todas as informações, e mesmo de entender
algumas coisas… então me parece que quem não leu o livro talvez não tenha
captado a profundidade da trama. Não tivemos a intensidade e o horror das
descobertas, ou mesmo da vida na Comunidade, tudo tão mecânico, rotulado e
pronto. Mas tendo lido o livro e me apaixonado por ele, o filme estava na
medida certa. Meus olhos se encheram com a maneira como as coisas foram
transcritas para uma nova linguagem, a cinematográfica, e todos os meus medos
se esvaíram razoavelmente depressa.
Porque o filme está diferente. Eles mudaram muitas
coisas, desde a idade deles até as Atribuições de Asher e Fiona, por exemplo,
que recebem funções importantes para o desfecho do filme, mas quer saber? Em
momento nenhum eu questionei qual filme estava vendo. Não precisei deixar o
livro de lado para aproveitar a obra como um filme, porque elas estavam tão
intrinsecamente ligadas em seu cerne que se tornaram indissociáveis, quase
complementares. Mesmo com mudanças, o tempo todo, o filme se manteve fiel ao
original em sua essência, os personagens bem caracterizados, os acontecimentos
corretos e a mesma história contada, com pequenas diferenças. Mas a mesma
história. Toda a emoção estava lá, todos os questionamentos…
Não preciso dizer que eu me apaixonei novamente.
Se você não leu o livro, eu te aconselho a lê-lo…
é uma leitura rápida, teoricamente simples mas paradoxalmente complexa – e ela
vai te ajudar a vivenciar O Doador de
Memórias muito melhor. Num futuro distante, o mundo se dividiu em
Comunidades, onde a mesmice se estabeleceu, e eles vivem em paz e harmonia,
numa dita sociedade perfeita. Num lugar
sem guerras, sem intrigas e sem ódio, os habitantes daquele lugar vivem de
maneira mecânica sem realmente viver,
sem conhecer o que é a alegria, a diversão… e o amor. Eles não conhecem música,
não conhecem a sensação de descer uma colina em um trenó. Não há relação entre
homem e mulher, e mesmo dentro da família, as Crianças-Novas são designadas a Unidades Familiares, e o sentimento
superficial não passa de um fingimento de “vida”.
Jonas, durante a Cerimônia das Atribuições, é
escolhido para ser o próximo Recebedor de Memórias. E desde então sua vida
nunca mais será a mesma. Enquanto no livro temos a oportunidade de passar
várias e várias páginas conhecendo a Comunidade e seu funcionamento, se
revoltando com a maneira como eles “vivem”, isso no filme passa muito depressa
– conhecendo a história, foi uma introdução belíssima que mostrou a vida na
Comunidade, aquele mundo sem cores, as obrigações de cada um, e aquelas
respostas prontas e sem significado, como o pedido de desculpas, ou a constante
repreensão para que eles tenham “precisão de linguagem”. E então Jonas, no
filme o número 52, é anunciado como o novo Recebedor…
Foi profundamente emocionante ver as memórias no
filme, a maneira como elas foram apresentadas. Achei uma fidelidade incrível
manterem o trenó (mesmo que ele não seja vermelho) como a primeira lembrança
que Jonas recebe, e foi interessante que ela esteja tão intrinsecamente ligada
à memória da casa no Natal, que é a memória favorita do Doador. Ambas tão importantes
para o final do filme, e certamente as mais marcantes do livro, devidamente
valorizadas. No restante, o filme aproveitou o momento das memórias para
realmente passar suas mensagens, para mostrar as cenas mais impactantes, para
nos comover.
A partir do livro, temos noção que Jonas vivencia
as memórias como se ele mesmo estivesse lá, ao ser pedido para olhar para baixo
e reconhecer o vermelho do trenó, ou então as dores e sofrimentos que sente na
guerra, ou que Rosemary sentiu… a maneira como isso foi colocada no filme ficou
belíssima. Foi uma interessante mistura entre cenas mais longas com Jonas em
diferentes épocas e diferentes experiências (ficou muito bom como colocaram o
sofrimento da guerra), e cenas mais curtas passando depressa de acontecimentos
importantes… sejam sofrimentos de nosso mundo, ou de felicidades combinadas, ou
uma coletânea no intuito de passar força a Jonas para sua última jornada.
Lindo.
No lugar de Jonas, ninguém poderia ter agido de
maneira diferente. Receber aquelas memórias, perceber que há muito mais no mundo
do que aquilo que ele sempre acreditou, e que toda sua vida é uma mentira, e na
verdade ele nunca nem foi feliz, mexe com ele como mexeria com qualquer um.
Como confiar no pai? Como querer voltar para casa e continuar mentindo? Ele
precisa fazer alguma coisa! E ele começa com coisas pequenas e belíssimas, que
funcionaram incrivelmente bem no filme, como pegando as bandejas e escorregando
com Fiona, em uma tentativa de reproduzir a sensação de felicidade e liberdade
que era estar num trenó na neve; ensinando Lily a dançar, que foi uma coisa que
realmente me emocionou; ou contar ao Gabe que aquele não era um hipopótamo, mas
um elefante…
Os personagens ganham mais destaque no filme.
Felizmente, contra todos meus receios, o foco do filme continua basicamente no
Jonas e no Doador, com uma bonita e intensa participação de Gabe. Mas o filme
também aproveitou bem Asher e Fiona, mudando suas Atribuições – sendo eles um
pouco mais velhos, foi perfeitamente cabível colocar Fiona mais evidentemente
como um interesse amoroso de Jonas, já que ele gosta tanto dela, e a colocaram
como Criadora para que ela pudesse ajudar a roubar o Gabe; colocaram o Asher
como Piloto para que, como tivemos uma busca mais intensa no filme, ele pudesse
também ajudar o amigo. Amigos para sempre.
E a Anciã-Chefe, sinceramente? Me pareceu uma desculpa para colocar Meryl
Streep no filme e venderem ingressos por isso.
Como se O
Doador de Memórias já não se sustentasse sozinho por sua profundidade.
Nesse ponto, o filme parece ter tentado se aproximar
de outras produções que não são o foco nesse momento. O livro publicado em 1993
foi inovador para a época, e trouxe com maestria e sutileza assuntos
pertinentes e questionamentos plausíveis – infelizmente, e digo isso com pesar,
o filme falhou na chamada sutileza. Não
era necessário que tivéssemos uma Anciã-Chefe preocupada com as ações de Jonas,
constantes repreensões para que ele não quebrasse as regras, nem o medo
constante de que ele estivesse “se tornando perigoso para a Comunidade”. Isso me
parece muito com outras coisas que já vimos no cinema, e não é o que Lois Lowry
traz em seu livro, que deixa isso tudo nas entrelinhas, e foca em Jonas, em
suas descobertas, suas crenças e suas convicções. A intensidade está em vê-lo não
querer mais aquela vida, disposto a mudar, planejando com o Doador, incapaz de
retornar para casa e agir normalmente. Mas ele sai tranquilamente, sem socar a
cara de ninguém, enfrentar Anciãos, ou quebrar tantas regras…
Quando Jonas conhece o sentimento do amor, temos
as melhores cenas do filme na minha opinião. Sempre fiquei incrivelmente
fascinado pela maneira como ele ama e protege Gabe, e isso se traduziu muito
bem para a tela. Depois de perguntar ao pai se ele o amava e ser repreendido, Jonas tem uma cena simples e terna com
Gabe, cheio de caretas, risadas gostosas do bebê, e uma declaração de amor: “I love you, Gabriel”. E a primeira
memória transferida. Esse tipo de amor é o mais real e o mais bonito de se ver,
bem como o do Doador por Jonas, que passa um ano ao seu lado o amando como um
filho, e isso fica evidente nos momentos em que eles estão do lado de fora, ou
que estão rindo, se abraçando… e antes de partir, o Doador diz a Jonas que o
ama, mas não lhe dá tempo o suficiente para retribuir o sentimento. Mesmo que
ele o faria.
No final do filme, eu realmente me emocionei…
tivemos mais do que no livro, e a última cena não foi tão aberta a
interpretações quanto o original, o que de certa maneira é uma pena, mas por
outro lado foi uma bonita conclusão. Depois de todo um conjunto de cenas bem
filmadas, e o contraste entre o mundo descolorido e as cores vivas que Jonas
vê, acompanhamos a jornada final de Jonas com Gabriel, enquanto as cores fogem
novamente da Comunidade… e ver Jonas no deserto, na água, na neve, sempre
abraçando e protegendo Gabe da melhor maneira possível. Eu chorei com as
declarações de amor, eu chorei com a última cena do trenó que acaba na casa e
na canção de Natal… eu disse com Jonas as últimas palavras, que eram as mesmas
do livro, e chorei pela sua beleza.
O filme está lindo e recomendado. Mas eu realmente
tenho que admitir: eu não sei se será um sucesso, e se muita gente vai entender
o motivo de eu exaltá-lo tanto. Não que eu o tenha entendido mais do que
ninguém, mas acho que os leitores apaixonados por essa obra entenderão meus
sentimentos. Talvez a obra escrita seja mais rica em profundidade, nos leve
mais diretamente a reflexões e a idéias revolucionárias, mas tendo lido o
livro, eu pude entender cada pequeno detalhe e cada cena do filme, e ligá-lo à
sua respectiva profundidade da obra de Lois Lowry, e assim ter uma experiência
completa. Uma experiência completa e sublime, que me fez sair do cinema me
sentindo incrivelmente melhor. E ansioso por retornar.
Olá gostei muito de sua crítica! Gostei muito do filme também. Queria entender que casa é aquela no final e por quê Gabe e Jonas tinham a mesma marca nos punhos..
ResponderExcluirOlá, Jonathas :D
ExcluirEntão, quanto à casa no final, é como se fosse o eco de uma lembrança que o Jonas recebeu... o Doador passou a ele a lembrança de uma casa daquele jeito no Natal, foi quando ele entendeu o conceito de "lar", de "família" e de "amor", que supostamente foram tirados do mundo. Representa o momento em que ele realmente deixa a comunidade para trás e se depara com esse mundo mais parecido com aquele "real" dos quais as memórias falavam... onde ele queria estar, o que ele queria que a comunidade fosse. Embora no livro fique muito mais ambígua essa cena, e não sabemos realmente se é uma casa celebrando o Natal, ou apenas um eco/alucinação de Jonas depois de tudo pelo o que passaram...
Quanto à marca nos punhos... foram substitutos aos olhos. Cada Recebedor de Memórias tem uma marca que lhes representa; no livro são os olhos claros, apenas os recebedores tinham olhos claros: o Doador, o Jonas, o Gabe e a Rosemary. Acho que por termos tantos atores de olhos claros em Hollywood (kkk) eles mudaram no filme e colocaram aquela marca nos punhos, como sinal de que eles eram recebedores: o Doador, Jonas e o Gabe.
Espero ter ajudado ^^
VOLTE SEMPRE =P