Cidade dos Etéreos (Livro II, Ransom Riggs)
A viagem extraordinária continua.
Depois de conhecer um fascinante mundo novo na misteriosa ilha em que a srta.
Peregrine dirigia um lar para crianças peculiares, Jacob Portman se vê em fuga
com seus novos amigos. Juntos, eles descobrem que só têm um caminho a seguir:
ir para Londres, a cidade onde os peculiares se concentram, na esperança de
encontrar uma cura para a srta. Peregrine.
Nessa cidade devastada pela
guerra, surpresas terríveis estão à espreita a cada esquina. Além de levar as
outras crianças peculiares a um lugar seguro, Jacob precisa tomar uma decisão importante:
permanecer no passado com Emma Bloom, por quem se apaixonou, ou voltar para os
pais, nos dias de hoje.
É uma sequência interessante, convidativa… até
envolvente. Mas é menos do que eu esperava. Focado na questão mais mágica da
fantasia, o livro de Ransom Riggs se sai muito bem como isso: uma fantasia. No
entanto, a dualidade entre o real e o imaginário do primeiro livro se perde e,
com isso, o livro automaticamente perde profundidade. Há uma boa história,
divertida, mas é tudo muito mais linear, exige menos do leitor. As coisas estão
entregues e você só precisa fazer a concessão máxima de aceitar que Jacob é
mesmo um peculiar, viaja pelo tempo e tudo o mais… não teria problema de aceitar e defender isso, caso a duplicidade de
possibilidades ainda se mantivesse. Da forma como foi feito, no entanto, eu
lamento a profundidade incrível alcançada em O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares se esvaindo.
Analisando não em perspectiva do primeiro, mas como um livro de ficção
fantástica, é muito legal. A narrativa gostosa, a boa trama amarrada com fotos
reais que dão um toque especial ao livro, um pouco macabro, mas absurdamente
curioso. As páginas se viram em uma aventura eletrizante com um monte de coisas
acontecendo o tempo todo.
A aventura de crianças peculiares, pelo mundo, a
partir de 1940.
Cidade dos
Etéreos me fascina, de todo o modo. Percebo que estava mais receoso do que
eu precisava, mas percebo isso quando eu chego ao fim do livro e tenho uma
finalização perfeita, no Capítulo XIII, mais ou menos do jeito que eu esperava.
Com material para discussão. E agora estou curioso por Biblioteca de Almas, embora tendo lido o segundo livro isso se
torne muito mais macabro, por finalmente
entender o que o autor quis dizer com isso. O livro tem de tudo. Você pode
esperar diversão, pode esperar muita ação e momentos repletos de tensão, em um
suspense muito bacana. No entanto, eu acho que por vezes nós temos personagens
diferentes daqueles que conhecemos no primeiro livro da série – e não porque
eles se desenvolvam nem nada, mas porque às vezes eles parecem meros ecos
daqueles que conhecemos, mais superficiais e, consequentemente, menos
palpáveis. Talvez até fosse uma dica de Ransom Riggs, mas eu não vou entrar
nisso, não por enquanto. O fato é que Jacob Portman deixou o presente para trás
e passou a viver na fenda, em 1940, junto com seus amigos peculiares.
E as aventuras partiram de lá.
Gostei de como temos esse quê de viagem no tempo
permeando toda a narrativa. Quer dizer, as crianças estão em 1940 tentando
salvar a Srta. Peregrine, supostamente presa na forma de ave, e a construção do
cenário em 1940 é bastante convincente e um pouco perturbador, gosto disso. A quantidade
de outras fendas temporais pelas quais os peculiares passam também dá uma ideia
de novas possibilidades, novas viagens no tempo… e então precisamos entender
com qual teoria de viagem no tempo o autor trabalha. Em uma conversa bem
didática com Millard, nós entendemos que estamos em um universo de passado
imutável, pelo menos é nisso que eles acreditam. As crianças andam como
fantasmas por paisagens devastadoras destruídas pela Segunda Guerra Mundial e não
podem fazer nada, porque o passado só acharia uma forma de se curar. Portanto,
andam entre mortos, reavivados nessa construção do passado no qual eles podem tocar
e viver, mas que não estão de fato ali.
Chega a dar calafrios.
Acredito que essa sensação é própria da construção
geral do conceito de “cidade dos etéreos”. A cidade dos etéreos é uma Londres devastada pela Guerra. E não se
engane, é angustiante. Tudo parecia mágico na fenda temporal da Srta.
Peregrine, em um eterno 03 de Setembro de 1940, mesmo quando as bombas caem. Porque tudo se reinicia. Nós não temos
mais essa possibilidade agora. E eles parecem deixar um mundo de fantasia para
encarar a sofrida realidade da destruição e da crueldade, andando sobre
destroços, cinzas e corpos. Particularmente, uma cena me marcou profundamente,
que foi a passagem com Sam e Esme. Sam é uma peculiar (a peculiar da capa do
livro) com a capacidade de regeneração, mas que nunca se envolveu com o mundo
peculiar porque, acima de tudo, ama a sua irmãzinha mais nova e vai protegê-la
a qualquer custo. A cena das bombas explodindo, Sam colocando a irmã na
banheira onde se sentia protegida, e Esme tão alheia a tudo… aquilo me comoveu.
Toda a força do momento ainda levantou questionamentos a respeito da própria
natureza peculiar, e o quão bons ou não eles são.
E isso me interessa.
São questionamentos humanos pertinentes. Eles estavam
obcecados, convictos de sua missão de chegar a Londres, encontrar a Srta. Wren
e salvar a Srta. Peregrine, presa em forma de pássaro. E fizeram de tudo por
isso. Passaram por lugares terríveis, assustadores, seguiram dicas escondidas
nos Contos Peculiares, milagrosamente
salvos depois de toda aquela confusão no mar, no início do livro e encontraram
novas fendas temporais, novos peculiares. A fenda temporal dos bichos (liderada
por Addison, um cachorro de óculos e charuto) me divertiu bastante – era bizarro demais para eu levar a sério.
A segunda fenda temporal, onde conhecemos tanto Melina como Joel-e-Peter
(gostei MUITO deles!), é um pouco mais arrepiante, e eu acho que toda a discussão
do envelhecimento acelerado é uma preocupação pertinente para os peculiares. Como aquela foto dos dois homens dormindo nocom dois esqueletos na cama entre eles. A própria câmara com esqueletos
humanos em cima dos quais Joel-e-Peter se escondiam. Por fim, temos uma fenda
temporal lá pela segunda metade do século XIX, onde encontramos um show de aberrações,
um prédio inteiramente congelado e a Srta. Wren.
O livro está repleto de ação. Os poderes de Jacob
Portman se manifestam de uma forma mais significativa que nunca. E eles o nomeiam
a Sensação. Quer dizer, o Jacob pode não somente ver os etéreos, mas também
sentir sua presença, com intensidades e regularidades que lhe dizem qual a
distância deles e sua força. Parece meio forçado ao limite, mas até que fica
legal. E pode ser outra dica. Mas é depois da cena no Conselho das Ymbrynes que
as coisas começam a ficar MUITO melhores, e me fazem dizer, definitivamente,
que eu AMEI Cidade dos Etéreos. Porque
eu não estava esperando por algumas coisas. E nos dois âmbitos: seja do ponto de vista da fantasia das
viagens no tempo ou do ponto de vista da realidade que Jacob ignora. E eu
vou falar sobre elas. Vale ressaltar que O
Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares me intrigou
profundamente, e eu acho que o autor passou tempo demais nos dando motivos para
acreditar que tudo podia ser fantasia da mente perturbada de Jacob depois da
morte do avô para simplesmente ignorar isso tudo.
Portanto, eu acredito, sim, na possibilidade de tudo ser REAL. A fenda
temporal e as viagens no tempo. Mas eu nunca vou me convencer INTEIRAMENTE
disso por causa de tudo o que Ransom Riggs meticulosamente coloca na narrativa.
Pequenas (às vezes nem tão pequenas) dicas espalhadas por todo lado. Mas eu já
falei disso nas minhas outras duas postagens, caso lhe interesse. Em Cidade dos Etéreos isso é muito menos
frequente, mais uma sombra, um eco. Mas, de um jeito ou de outro, ainda está
lá. Como o celular, desligado, que Jacob sempre carrega consigo no bolso. Como uma
maneira de se ancorar na “realidade”, um ponto de refúgio que o acalma toda vez
que ele precisa. A necessidade de Jacob de se convencer de que aquilo tudo é
real (“Eu viajei no tempo. Isso é real.
Eu, Jacob Portman, estou viajando no tempo”) me parece questionável o
suficiente, e ele pode estar nos convencendo
também – lembrando que tudo é narrado do
ponto de vista de Jacob, então tudo vai ser tão real quanto ele quiser que seja.
Na página 325 ele volta a algo assim falando das memórias do avô, nas
histórias… “Em vários aspectos eu estava
vivendo a vida dele”.
No entanto, temos isso:
“Vaguei por
corredores vazios e escritórios invadidos e revistados tentando imaginar como
me sentiria em casa, se decidisse voltar depois de viver tudo aquilo. Pensei no
que diria a meus pais. Muito provavelmente, não diria coisa alguma. Eles nunca
acreditariam mesmo. Eu diria que enlouqueci, que escrevi uma carta cheia de
histórias malucas, que peguei um barco e fugi. Eles chamariam de reação ao
estresse. Descobririam alguma disfunção inventada e ajustariam meus remédios. Culpariam
o dr. Golan, por sugerir que eu fosse para o País de Gales. […] Eu voltaria a
ser um pobre menino rico, traumatizado e mentalmente perturbado” (p. 328)
Não sei o que isso significa de fato. Podem ser
apenas conjunturas de Jacob Portman. Um menino preso no passado, viajando no
tempo por fendas temporais, sem saber como será voltar para casa. Ou podem ser
espasmos de lucidez no qual Jacob Portman refuta toda a fantasia criada. Não sei.
“Só isso já
era bem surpreendente, mas talvez o mais surpreendente fosse o fato de que
viajar no tempo não tinha destruído meu cérebro – que, por algum milagre, eu
ainda não tinha ficado completamente louco e começado a discursas pelas
esquinas. A psique humana era muito mais flexível do que eu imaginava, capaz de
se expandir para conter todos os tipos de contradições e aparentes
impossibilidades. Sorte minha” (p. 277)
Essas últimas frases me parecem muito
significativas. E lembrando que o processo de escrita é lento, calculado. As palavras
e as situações não são escolhidas ao acaso. São pensadas uma a uma porque significam
alguma coisa. “A psique humana era muito
mais flexível do que eu imaginava, capaz de se expandir para conter todos os
tipos de contradições e aparentes impossibilidades”. Não vejo a hora de ler
Biblioteca de Almas para poder, de
fato, fechar a minha teoria, com as impressões fortes de O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares, as
impressões mais como ecos de Cidade dos
Etéreos e o que eu acho que deve ser uma finalização, de um modo ou de
outro, em Biblioteca de Almas. Vamos ver
as escolhas de palavras, as situações peculiares [!] na qual Jacob Portman se
mete, ainda mais agora que ele está de volta ao presente, no meio de uma
estação de metrô na Londres moderna, só com Emma e Addison.
Ah, sim, o final. O final é SENSACIONAL. Eu acho que
a finalização do livro é, de fato, a melhor parte. O último capítulo é
eletrizante. A aparição de Caul movimenta as coisas de uma forma quase
inesperada. E, então, em uma verdadeira confusão e uma ação angustiante, Jacob
consegue se salvar de ser levado pelos acólitos no trem, e fica para trás, com
Emma e Addison, o cachorro peculiar que está de volta. Gosto demais da passagem
em que o seu celular está de volta ligado, em que ele vê 177 Ligações Perdidas
do pai, em que conversa com ele por telefone, tentando explicar que está tudo
bem e o pai insiste que ele está confuso.
Uhm. Também temos o poder de Jacob se expandindo quando ele consegue falar na
língua dos etéreos e realmente mandar que um deles não os ataque. Acho que
depois de um livro inteiro em 1940 e mais antigo que isso, é uma perspectiva
nova colocá-los de volta no presente, dá um vigor novo ao livro. Não sei
exatamente o que isso significa para as outras crianças peculiares, quão rápido
elas podem envelhecer, mas eu estou verdadeiramente empolgado para continuar…
Que venha
Biblioteca de Almas!
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