Desventuras em Série, Livro Sexto – O Elevador Ersatz
O que é in
e o que é out.
Ainda bem que releio os livros de “Desventuras em Série”. Os li pela
primeira vez há muito tempo, cerca de 10 anos atrás, e sempre gostei muito da
narrativa de Lemony Snicket. No entanto, eu mesmo mudei muito desde então, e
agora entendo os livros de um modo quase que totalmente novo. Talvez eu não
entendesse o intenso sarcasmo do autor em seus capítulos, talvez não percebesse
a ironia como o “arenque vermelho”, que para mim foi uma das melhores coisas de
todo o livro, e a maneira como o autor exagera e torna tudo muito mais
caricaturado como uma forma de crítica… Esme Squalor é a prova viva de como as
pessoas podem ser fúteis e desprezíveis, e essa constância de “o que é in e o que é out” no livro é revoltantemente verdadeiro. Rio de nervoso ao
reconhecer a sociedade em que vivemos.
Eis a sexta carta de Lemony Snicket aos seus
leitores:
Caro Leitor,
Se você acaba de pegar este livro
para ler, então não é tarde demais para colocá-lo de volta na estante. Como os
livros anteriores dessas DESVENTURAS EM SÉRIE, não há nada para se encontrar
nestas páginas a não ser desgraças, desespero e mal-estar, e você ainda está em
tempo de escolher alguma outra coisa.
Nos capítulos desta história,
Violet, Klaus e Sunny Baudelaire encontram uma escadaria escura, um arenque
vermelho, alguns amigos em situação desesperada, três iniciais misteriosos, um
mentiroso com um plano sinistro, uma passagem secreta e refrigerante de salsa.
Jurei pôr no papel essas histórias
dos órfãos Baudelaire para que o grande público venha a saber de cada uma das
coisas terríveis que aconteceram com eles, mas se em vez disto você decidir ler
alguma outra coisa, irá poupar-se de uma montanha de horrores e desgostos.
Respeitosamente,
Lemony Snicket
Depois que a experiência na Escola Preparatória
Prufrock não deu certo, o Sr. Poe trouxe os Baudelaire de volta à cidade, e
eles estavam mais perto de sua antiga Mansão e da Praia de Sal onde receberam a
fatídica notícia em “Mau Começo” do
que nunca. Seus novos tutores? Esme e Jerome Squalor, que moram em uma luxuosa
cobertura. Tão grande, mas tão grande, mas tão grande, que eles comumente se perdem lá dentro. Milhões de banheiros,
cozinhas, quartos, salas de estar, salas de sentar, salas de ficar em pé… e
Esme Squalor super preocupada com nada mais do que o “in e o out”, o que
basicamente dita todos os elementos de sua vida. Por exemplo, elevadores estão out, então não importa se eles vivem 48 ou 84 andares para cima do
solo, se elevadores estão out, eles
não vão usá-lo. Ou energia elétrica, para ser sincero.
Até que volte a ser in.
E isso é tão randômico! Alguém decide, em algum
lugar, que alguma coisa é in (está na
moda), e todo mundo passa a AMAR aquela coisa, gostando ou não. É como os
martinis aquosos, ruins pra caramba, mas in.
Ou os refrigerantes de salsa, ainda piores, que substituem os martinis aquosos.
É vergonhoso e revoltante, e nós sabemos que diz MUITO sobre a sociedade em que
vivemos… em algum momento, os jovens Baudelaire até se perguntam o que serão
deles quando órfãos estiverem out.
Afinal de contas, esse é o ÚNICO motivo pelo qual Esme Squalor os aceitou em
sua cobertura: órfãos estão in, e ela tem
três só para ela! Chega a ser ultrajante! Mas, como sempre, pelo menos os
três irmãos estão juntos, e o Jerome não é assim tão mau – embora seja um
PAMONHA que não gosta de “gerar conflitos”, então é bem inútil, na verdade.
A estadia dos Baudelaire na Avenida Sombria 667
(!), no entanto, ainda reserva-lhes uma porção de surpresas, das mais
desagradáveis. Isso inclui uns pavorosos ternos risca-de-giz que eles são
obrigados a usar, e um tal de Gunther, o mais novo disfarce do Conde Olaf. Um
leiloeiro que finge não saber falar inglês e usa, constantemente, um irritante
“faz favor”. O mais desconcertante, ainda, é que eles encontram Gunther no
próprio apartamento, e depois não sabem como ele saiu do prédio, porque o
porteiro GARANTE que ele ainda não saiu! É assim que, eventualmente, as
crianças se dão conta do óbvio, que a resposta “estava bem diante de seu
nariz”, naqueles dois pares de portas de elevador na frente da cobertura, que
não tinha em nenhum outro andar. Um
dos elevadores NÃO ERA DE VERDADE. Era um elevador
ersatz.
Gostei muito da explicação e uso de “ersatz”, por
sinal!
Corajosamente, as crianças começam a explorar, e
armam planos malucos para descobrir o que há no fundo daquele imenso e vazio
poço de elevador, com uma corda ersatz. Assim, durante horas, eles descem por
uma corda até o fundo do poço de elevador, em uma escuridão profunda e
assustadora, que os leva a uma revelação: UMA JAULA COM OS TRIGÊMEOS QUAGMIRE.
Foi tão reconfortante vê-los novamente! Para os Baudelaire. Para os Quagmire. E
para nós, leitores. Eles estavam encolhidos e trêmulos, com medo, mas os
Baudelaire fariam de tudo para salvá-los antes que Gunther tentasse levá-los
embora durante o leilão que se aproximava e que Esme Squalor era a organizadora
– para ficar com o dinheiro todo para si,
por sinal. Corajosamente, as crianças escalam pela corda ersatz novamente à
cobertura, para dar um jeito de tirá-los de lá.
E é angustiante. Desde o momento em que você lê a
subida de volta dos Baudelaire, você sabe que eles não descerão a tempo de
salvar os amigos. Violet tem um plano, e ele poderia funcionar, se não fosse
tão demorado e tão perigoso. Consistia em atiçadores que pretendia usar para
derreter as barras de metal da jaula, mas isso tudo levou tempo demais, fora o
tempo de subida e descida que já era imenso! Então quando eles descem,
segurando atiçadores quentíssimos em uma das mãos, eles chegam lá embaixo e
encontram a jaula VAZIA, naturalmente. Mas se Gunther pretendia levá-los embora
escondidos no leilão que viria, os Baudelaire só tinham uma alternativa:
estudar os artigos do leilão e descobrir onde eles estariam, e apenas um
chamou-lhes a atenção: LOTE 50, C.S.C. Só
podia ser aquele. Ou foi isso o que eles pensaram.
Uma das maiores surpresas (de algum modo) é a
traição de Esme Squalor. Ela era mesmo uma mulher desprezível, mas eu supus que
ela fosse apenas uma pessoa fútil seguindo o in e o out, mas ela
estava trabalhando com Gunther o tempo todo, ciente de que era o Conde Olaf,
disposta a roubar dos Baudelaire “do mesmo modo que Beatrice roubou dela”, o
que era chocante. Nisso tudo, ela inclusive JOGOU OS IRMÃOS pelo poço de
elevador ersatz, mas essa foi a MENOR das surpresas que os aguardavam. Porque
inicialmente eles caíram em uma rede, depois conseguiram descer novamente até
onde os Quagmire estiveram mantidos prisioneiros, e só havia uma forma de
escapar agora: seguindo o escuro túnel
adiante. E, para sua surpresa e seu desespero, eles saem nas cinzas de um
lugar que conheciam muito bem: A MANSÃO BAUDELAIRE.
Fiquem sem fôlego lendo a passagem!
Mas eles não tinham tempo para sentimentalismos
exagerados. Eles precisavam correr e salvar os amigos, presumivelmente presos
no LOTE 50, C.S.C., do Leilão In.
Para mim, a cena do Leilão é uma das brincadeiras mais cruéis e mais
inteligentes de Lemony Snicket. Porque as crianças estão tão desesperadas para
fazer alguém acreditar nelas, tão convencidas de que Duncan e Isadora estão no
LOTE 50, tentando convencer Jerome a comprá-lo para elas, que deixaram passar
uma imensa pista… no LOTE 48, um arenque vermelho, uma estátua de peixe tão
grande que “daria para dormir lá dentro”, como o próprio Gunther anunciou.
Fazia muito mais sentido em inglês (imagino o PRAZER de ler essa passagem em
seu idioma original pela primeira vez), mas é um trocadilho infame e
inteligente de Lemony Snicket, escondendo a verdade na nossa cara.
“Será preciso usar uma expressão em inglês, ‘a red
herring’, para descrever o que havia dentro da caixa de papelão. ‘A red
herring’ significa ‘um arenque vermelho’, o que, naturalmente, é um tipo de
peixe. Porém, em inglês, ‘a red herring’ é também uma expressão que significa
‘uma pista falsa para confundir e enganar’. Gunther usara as iniciais C.S.C. na
caixa para enganar os Baudelaore, fazendo-os pensar que seus amigos estavam presos
lá dentro e, lamento dizer, os Baudelaire não perceberam que era um red herring
até que olharam em volta do palco e viram o que a caixa continha”
O Klaus devia ter notado isso…
Mas ele estava afobado demais para salvar os seus
amigos, então nós o perdoamos. Mas Lemony Snicket foi astuto, colocando as
decorações de peixe como in desde
muito cedo, e inicialmente até nos enganando também com a Caixa C.S.C.! Mas o
uso do “red herring”, simbólico e literal, foi realmente bacana – ele deve ter
se divertido horrores escrevendo essa passagem. Assim, em um “arenque vermelho”
real e figurativo, os Baudelaire perderam os seus amigos bem diante de seus
olhos, enquanto o arenque vermelho era levado embora e já era tarde demais para
que alguém acreditasse neles que Gunther era o Conde Olaf. Ele havia escapado uma vez mais. No entanto, as crianças sabiam que
elas tinham umas às outras, como
sempre. É triste que eles não tenham mais ninguém e mais nada, mas é belo ver o
amor e o companheirismo de Violet, Klaus e Sunny, sabendo que eles nunca
decepcionarão uns aos outros.
Eles só precisam seguir enfrentando essas
“desventuras” loucas.
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