Não Olhe Para Cima (Don’t Look Up, 2021)

Qualquer semelhança com a realidade…

Debochado e ironicamente perturbador, “Não Olhe Para Cima” é o retrato de como o negacionismo pode acabar com o mundo – e o pior: não é mera ficção. Com um elenco de peso e um tom satírico, “Não Olhe Para Cima” se debruça sobre uma tragédia que pode literalmente matar todo mundo no planeta (!), enquanto líderes mundiais não dão atenção aos avisos, apresentam soluções que não foram comprovadas cientificamente e condenam a população à morte… e eu não estou falando da Covid-19, de presidentes ignorantes recomendando Cloroquina, ou de cientistas sendo ignorados, mas poderia. Qualquer semelhança com a realidade NÃO é mera coincidência. Em um mundo no qual a ignorância cresce e, pior, as pessoas se orgulham disso (!), infelizmente “Não Olhe Para Cima” é um retrato doloroso da realidade, mas que quem deveria ouvir não vai entender.

Eles vão continuar “não olhando para cima”.

O filme traz um tema que é muito famoso em Hollywood: um asteroide que vai cair na Terra e acabar com o mundo. Inusitadamente, no entanto, o filme não tem aquele tom de drama e heroísmo como grandes clássicos do gênero: ele é um filme muito mais político e social do que, de fato, de ficção científica. “Não Olhe Para Cima” tem momentos bizarros que se aproximam da comédia graças à direção, efeitos e cortes, e os personagens são colocados em situações cada vez mais absurdas enquanto só estão tentando alertar a população sobre a gravidade da situação, e eventualmente percebemos que esse tom erroneamente confundido com a “comédia” está tecendo uma incrível sátira do mundo contemporâneo que nos leva, sim, a eventuais risadas, mas que também nos faz refletir sobre o mundo em que vivemos e as pessoas ao nosso redor.

Não se assuste se você também encontrar melancolia… talvez você só tenha entendido o filme e está triste porque o está vendo acontecer na realidade. Tudo começa com a descoberta de Kate Dibiasky: um asteroide de proporções gigantescas está em rota de colisão com a Terra e eles têm pouco mais de seis meses para impedir que toda a vida no planeta seja destruída. Para isso, então, eles precisam alertar outros cientistas e outras faculdades e, é claro, falar com a Presidente dos Estados Unidos – afinal de contas, a NASA deve ter algum plano do que fazer em uma situação dessas, certo? Kate e Mindy, os responsáveis pela descoberta, ficam encarregados de conversar com Janie Orlean, a Presidente, sabendo que ainda há tempo de se fazer algo e, com um pouco de esperança, conseguir desviar o curso do asteroide… isso é, se ela quisesse fazer algo.

É inquietante assistir ao filme enquanto quem pode fazer algo não dá ouvido aos cientistas. A Presidente está focada demais em outras coisas, como a eleição por vir, para ouvir os avisos e fazer algo – ela realmente diz que “vão esperar e avaliar”. Então, Kate e Mindy resolvem divulgar um artigo e aparecer na televisão para que todos saibam o que está acontecendo… as cenas da TV foram ainda mais inquietantes, se você me perguntar. Perceber o desespero dos cientistas tentando dizer algo SÉRIO enquanto tudo era transformado em piada para “amenizar” e para “não assustar” as pessoas, mas é como eles dizem: nem tudo precisa ser leve e divertido, às vezes as pessoas precisam saber que ELAS PODEM MORRER. No fim, a participação de Kate e Mindy em um programa de TV de caráter duvidoso acaba se tornando apenas matéria-prima para memes, enquanto o filme critica a maneira como a mídia manipula as informações e, consequentemente, as pessoas.

Eventualmente, quando um escândalo ameaça a campanha da Presidente Orlean, ela resolve fazer alguma coisa, de maneira espalhafatosa, com um discurso forçado, como se ela sempre tivesse se importado – é impressionante, de uma maneira revoltante, como políticos curvam a realidade à sua vontade em discursos absurdos que não condizem em nada com o que de fato aconteceu. Orlean encontra no asteroide que ruma para a Terra uma maneira de fazer campanha e se promover, mas, até aí, os cientistas estão suficientemente satisfeitos se eles fizerem algo e conseguirem desviar o curso do asteroide… aquilo se torna um grande evento, o mundo todo assistindo ao lançamento ao espaço em uma missão heroica, que logo em seguida é cancelada.

Sem mais nem menos.

O fato de o plano embasado por pesquisas e defendido por cientistas e que poderia ter salvado o mundo com meses de antecedência ser abortado em troca de uma suposta solução que não tem embasamento científico algum é a ideia mais absurda e revoltante de “Não Olhe Para Cima”. É como se um presidente ignorasse e-mails, se recusasse a comprar vacinas e, em troca, defendesse um remédio sem comprovação alguma que os cientistas estão dizendo que não tem nada a ver com a doença contra a qual se luta, sei lá – não que isso fosse acontecer na realidade, jamais. Que presidente seria tão burro e asqueroso a esse ponto, certo? Então, a Presidente Orlean abraça um plano que não é verificado por nenhum cientista e que diz que “eles vão explodir o asteroide e fazê-lo cair em partes pequenas na Terra”, porque, assim, eles poderão explorá-lo.

E são trilhões de dólares em jogo. Olha aí a carinha do Capital.

“Não Olhe Para Cima” é debochadíssimo, e minha parte favorita, avaliando em termos de sátira social, foi toda a sequência que dá título ao filme. Até então, algumas pessoas ainda duvidavam da existência do asteroide (!), e quando ele passa a ser visível a olho nu, Kate, Mindy e outros cientistas convidam as pessoas a olharem para cima e vê-lo se aproximando, e a Presidente começa uma campanha mandando as pessoas “não olharem para cima” – e seus seguidores compram essa ideia em um movimento patético e risível. Sabe o movimento anti-vacina de bolsominions? Então… quando os apoiadores da Presidente Orlean finalmente decidem “olhar para cima” e VER o que está acontecendo, já é tarde demais, não há mais nada que se possa fazer: o plano idiota de explodir o asteroide, como sempre soubemos que aconteceria, não funcionou.

Quando se permite que o negacionismo ganhe, essa é a única conclusão possível. Não havia outra maneira de encerrar o filme, depois de tanta negação e negligência, a não ser com o fim do mundo: os cientistas estavam certos e, se nada fosse feito, a vida na Terra acabaria. Adoro como o filme faz isso no tom a que se propôs e torna a cena ironicamente divertida, de certo modo, e eu confesso que senti certa satisfação ao ver o plano absurdo não funcionar, porque eu adoro dizer: “Eu avisei”. É isso aí o que acontece quando se apoia presidentes como Orlean. Fiquei emocionado e triste com a sequência dos cientistas e a família de Mindy reunidos em volta da mesa, conversando e compartilhando uma última refeição antes do fim do mundo, e então o asteroide cai e destrói o planeta… também RI MUITO da ironia do “epílogo”, que foi a chegada dos ****** ** **** em outro planeta.

Resultado? Eu adorei o filme. Como eu comentei, é uma sátira assustadora do momento em que vivemos, em que as pessoas negam a ciência, escolhem deliberadamente a ignorância e seguem cegamente políticos incompetentes e maus. “Não Olhe Para Cima” é um filme inusitado e que acerta muito em sua proposta ao subverter um gênero que o cinema norte-americano adora e torná-lo uma crítica social no qual um “final feliz” não era possível dentro das circunstâncias apresentadas. Minha única crítica ao filme é o seu tamanho – achei longo, não vou negar, e sinto que poderia ter uma meia hora a menos, mas a história é bem-contada, a crítica é sólida e eu terminei o filme satisfeito. Destaque também para a atuação de estrelas consagradas há anos, como Jennifer Lawrence, Leonardo DiCaprio e Meryl Streep. Um excelente filme, recomendadíssimo!

 

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