No Ritmo do Coração (CODA, 2021)

“Can you sing it for me?”

Emocionante, divertido e necessário, “No Ritmo do Coração” é um filme lindíssimo que encantou crítica e público desde o seu lançamento (atualmente, o filme conta com 94% de aprovação da crítica e 91% de aprovação do público no Rotten Tomatoes). Vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2022, o filme conta a história de Ruby Rossi, uma garota ouvinte, de 17 anos, em uma família de adultos surdos (inclusive, o nome original do filme em inglês, “CODA”, se refere à sigla para “Child of Deaf Adults”, ou seja, “filho de adultos surdos”), que se vê dividida entre a sua paixão pela música, especialmente quando ganha a oportunidade de conseguir uma bolsa para estudar em uma faculdade de música em Boston, e o trabalho de pesca que sempre fez com a família, sendo a ouvinte de que eles precisam no barco para não perderem a licença para continuar pescando…

Uma das coisas de que mais gostei no filme foi o tom escolhido para contar essa história, porque existiam muitos caminhos potencialmente equivocados que poderiam ter sido escolhidos e, felizmente, o roteiro, a produção, a direção e toda a equipe fizeram um belo e sensível trabalho ao escolher um retrato mais fiel da realidade – “No Ritmo do Coração” não apela para o drama sensacionalista, não reforça capacitismo e retrata a pessoa surda em sua complexidade e humanidade, não como um artifício do roteiro para falar sobre o tema… assim, o filme consegue ser divertidíssimo (dei sinceras risadas em vários momentos), flertando constantemente com o gênero da comédia, sem, por isso, perder sua densidade narrativa e sua carga dramática… é um equilíbrio perfeito que transmite verdade, e isso é exatamente o que um bom filme precisa fazer…

Ruby é uma adolescente que já sofreu vários tipos de preconceito na escola: porque os pais são surdos, porque ela falava “engraçado” quando chegou à escola, porque ela vai para a aula cheirando peixe porque acorda às 3:00 da manhã para ir pescar com a família e ajudar a garantir o sustento da casa… mas Ruby não quer passar o resto da vida fazendo isso. Parte dela parece ter “aceitado” isso, como se fosse sua obrigação continuar o resto da vida sendo “a intérprete gratuita” de sua família, mas quando ela precisa escolher um clube para se juntar na escola e escolhe o coral impulsivamente, porque o garoto por quem tem um crush está se inscrevendo para ele, ela descobre que talvez não precise passar o resto da vida no meio dos peixes. Ela sempre gostou de cantar (a primeira cena do filme deixa isso claro), mas é mais do que isso: ela tem talento.

E o Sr. Bernardo Villalobos se voluntaria para ajudá-la em uma audição.

Gosto muito de como o filme é amplo e completo, e consegue explorar diferentes facetas de uma história. Temos o romance entre Ruby e Miles, que gera momentos surpreendentemente fofos; temos as cenas de Ruby com o Sr. Villalobos, que a está ensinando a abrir as asas; e temos as cenas com a família, que está tentando se livrar dos abusos da empresa para quem vendiam os peixes e abrir uma cooperativa, mas precisa tomar para si o protagonismo de suas atividades e deixar que Ruby voe. É a complexidade do amadurecimento em mais de uma perspectiva, com o fato de Ruby vir de uma família de adultos surdos ser apenas um dos elementos dessa história, porque vai muito além disso… Jackie, assim como 90% das mães, não quer ver a filha ir embora para outra cidade para fazer faculdade, porque, para ela, Ruby sempre foi e sempre vai ser sua bebê.

Mas Ruby quer ir embora, ela quer ter sua própria vida, ela quer poder fazer algo pelo que ela é apaixonada… e, pela primeira vez na vida, ela vislumbra essa possibilidade. Ela se divide em mil para dar conta não só da escola e da pesca, o que ela provavelmente já fazia há anos, mas também dos ensaios extras com o Sr. Villalobos, para tentar uma vaga em Berklee, e da cooperativa que os pais estão tentando começar, e para o qual precisam dela mais do que nunca, como intérprete… e é justamente aqui que o filme traz algumas discussões muito pertinentes, em parte através do personagem de Leo, o irmão mais velho de Ruby, no qual ele fala sobre como eles não são indefesos, como algumas pessoas acreditam, e como a comunidade também precisa aprender a se comunicar com eles, se eles vão trabalhar todos juntos. Não são sempre eles que precisam se adaptar.

Em paralelo, a relação de Ruby com Miles é marcada musicalmente pelo dueto que Bernardo os coloca para ensaiar juntos, para uma apresentação, e por momentos engraçados, difíceis e românticos. Sofremos, em parte rindo, com o constrangimento dos pais fazendo sexo enquanto Ruby está ensaiando com Miles no quarto, e rimos de toda a situação (embora ninguém quisesse estar na pele de Ruby) na qual os pais a colocam quando perguntam para Miles sobre suas intenções e os instruem a usar camisinha (!), mas sofremos imediatamente após, quando percebemos que a história se espalhou pelo colégio… embora o primeiro impulso seja ficar extremamente bravo com Miles, eventualmente eu entendo que ele foi imaturo, talvez, mas não contou ao amigo porque eles estavam rindo pelos pais dela serem surdos, mas porque a situação foi engraçada.

E foi… talvez ele não devesse ter compartilhado, mas não foi por mal.

De todo modo, aquilo poderia ter sido o fim do romance de Ruby e Miles, mas não foi… ele fez de tudo para que ela o perdoasse, e ele estava sendo tão querido e tão fofo que acreditamos, assim como a Ruby também acredita, em sua sinceridade, e toda a construção da relação deles é convincente e bonita – e forte. As falas de Miles sobre os problemas que enfrenta em casa, sobre como os pais se odeiam, e sobre como, em parte, tem inveja do fato de Ruby “ter uma vida perfeita” reforçam a ideia de como nós, seres humanos, somos muito mais complexos do que outras pessoas notam… como geralmente não temos ideia do que o outro vive, do que o outro pensa. É bonito e reconfortante ver Ruby e Miles superando isso e protagonizando toda aquela sequência da água, mostrando que são nesses pequenos momentos especiais que a intimidade se constrói.

“No Ritmo do Coração” também consegue abordar as situações de perspectivas distintas… tem o olhar mais óbvio, que é de fora para dentro, mas o roteiro também explora com competência o olhar de dentro da família para o mundo exterior. Quando Jackie tenta proteger a filha e não dá o devido reconhecimento ao seu sonho pela música, existe ecos da desvalorização das profissões artísticas como um todo e da pressão da sociedade pela escolha de algo que seja mais “certo”, mais “concreto”… no caso de uma família formada por adultos surdos, existe um agravante a mais nessa questão que é: como eles sabem que Ruby é realmente boa? Uma das cenas mais poderosas do filme acontece durante a apresentação de Ruby na escola, quando o áudio é cortado para termos uma experiência mais próxima da que Jackie, Frank e Leo estão tendo, e avaliamos seus olhares confusos, explorando as reações ao redor.

É essa sequência que proporciona duas das cenas mais emocionantes do filme, em sua reta final. A primeira delas é protagonizada por Ruby e pelo pai, no mesmo dia da apresentação na escola (aquela cena popularizada pela cerimônia do Oscar), quando os dois se sentam na caçamba da caminhonete, olhando para as estrelas, e o pai pergunta sobre o que falava a música que ela estava cantando… quando ela explica que se tratava do que “se faz por outra pessoa”, o pai pede que ela cante para ele; assim que ela começa a cantar, ele pede que ela cante mais alto e coloca as mãos no seu pescoço, para que possa sentir a vibração das suas cordas vocais. É, certamente, uma das cenas mais intensas e mais bonitas da história do cinema, e não perde o impacto, não importa quantas vezes a vejamos, porque a emoção nos olhos de ambos é verdadeira.

A segunda cena vem na audição para Berklee, quando o pai, convencido de seu talento, faz de tudo para levá-la até Boston, porque ela precisa pelo menos tentar essa vaga… toda a narrativa culmina naquele momento, no qual Ruby está no centro do palco, fazendo o que sempre quisera fazer, o Sr. Bernardo Villalobos está no piano, a acompanhando, e a família está na plateia, lhe dando apoio e forças. A maneira como Ruby canta para a família e a envolve em sua apresentação, incorporando a língua de sinais em sua performance, é tocante e me fez pensar imediatamente na versão de 2015 de “Spring Awakening” na Broadway, montada com elenco surdo do Deaf West e ouvinte, em inglês e língua de sinais simultaneamente (Daniel Durant, o Leo de “No Ritmo do Coração”, foi o Moritz dessa versão de “Spring Awakening”, por sinal). É lindíssimo.

Toda a montagem final do filme é linda e mostra a força que “No Ritmo do Coração” tem. Durante uma única música, vemos o crescimento de Ruby na audição, vemos a sua performance em língua de sinais, vemos a concretização da transformação de atitude de sua família em relação ao seu sonho e seu talento, vemos mais do seu romance com Miles, no lugar especial que eles encontraram para eles, vemos a cooperativa dos pescadores dando certo e a comunidade aprendendo a se comunicar com os Rossi, e vemos a ansiedade natural que antecede a espera de um resultado como aquele… e então Ruby é aprovada e parte para Boston, para estudar música, mas sabe que vai dar tudo certo: o filme não conta apenas a história do amadurecimento de uma adolescente indo para a faculdade, mas do amadurecimento de toda uma família.

Lindíssimo e recomendadíssimo!

 

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Comentários

  1. Fiquei impressionada como vc traduziu em palavras todos os sentimentos e emoções do filme.

    PS: sua mãe tem muito orgulho de vc. Tem seus motivos: amei sua forma de escrever.

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