A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes (Suzanne Collins)
“Só acaba quando o tordo canta”
Lançada
entre 2008 e 2010, a trilogia “Jogos
Vorazes” é uma fantasia distópica com toques de ficção científica e muita
crítica social. Dez anos depois de “A Esperança”,
que concluía a história de Katniss Everdeen e o Presidente Snow, Suzanne
Collins nos leva de volta ao universo de Panem, com uma prequel centrada no jovem Coriolanus Snow – “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” é ousado, inteligente e
tão instigante quanto qualquer um dos livros na trilogia original. Ainda com
uma crítica ferrenha, mas narrada de
outro ponto de vista dessa vez, Suzanne Collins se aventura por terreno
não-explorado anteriormente, e nos surpreende novamente com sua capacidade inegável
de construir personagens complexos e histórias envolventes que nos fazem virar
as páginas avidamente.
“A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”
se passa muitos anos antes de “Jogos
Vorazes”, na época da 10ª edição dos Jogos, quando Coriolanus Snow, o
futuro presidente de Panem, era um jovem prestes a se formar na Academia – e,
mesmo naquela época, ele ajudava a moldar
o sofrimento dos Distritos, à sua maneira. Em uma época em que a memória da
guerra ainda era muito recente, e
quando a Capital estava tentando manter o seu controle sobre os “rebeldes” e
continuamente lembrar-lhes de “quem estava no comando”, os Jogos Vorazes
precisavam passar por adaptações que garantissem que ele cumpriria o seu papel
de subjugar os Distritos e impedi-los de jamais voltar a se rebelar contra a
Capital… e, para isso, alunos da Academia
são envolvidos no processo.
Contar uma
história do ponto de vista do detestável Presidente Snow, ainda que ele fosse
um jovem em formação naquela época, é arriscado e um trabalho de escrita
fenomenal. Suzanne Collins transforma em “protagonista” alguém que nós já
detestamos há mais de dez anos, e ela
não se importa com isso: ali está o futuro presidente de Panem, podemos ver as sementes que o transformarão na
pessoa que conhecemos, mas assim como Coriolanus precisa manter a pose apesar
de os Snow não estarem tão bem desde o fim da guerra e conquistar as pessoas ao
seu redor, ele também conquista o leitor, à sua maneira… não estamos do lado
dele, nunca o defendemos, mas existe certo charme
inegável no personagem que faz com que fiquemos vidrados nas páginas.
Coriolanus
Snow não chega nem a ser um anti-herói,
mas ele tem magnetismo e pose de protagonista. Acho particularmente
surpreendente a capacidade de Suzanne Collins de inverter a expectativa enquanto aprofunda a mesma crítica social
que já fizera em “Jogos Vorazes”:
fazer a crítica a partir do ponto de vista rebelde
e de quem é contra o sistema é muito
mais fácil do que fazer a crítica do ponto de vista de alguém que está do lado do sistema. Coriolanus Snow
é um garoto da Capital, ele a defende e acredita em seus propósitos piamente,
inclusive nos Jogos Vorazes, e, ao mesmo tempo em que a voz narradora se
aproxima do personagem e suas convicções, há distanciamento suficiente e bom
uso de figuras de linguagem para entendermos o que realmente está sendo dito.
Certamente, “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”
é um exercício literário MAGNÍFICO.
E,
naturalmente, Suzanne Collins nos apresenta outros personagens com peso de
protagonista que são apaixonantes,
como era de se esperar. Se em “Jogos
Vorazes” tínhamos Peeta, por quem era fácil de se apaixonar, o novo livro
nos traz dois personagens que são simplesmente incríveis: Sejanus Plinth, um colega de Coriolanus Snow na
Academia, que veio do Distrito 2 e se sente deslocado na Capital; e Lucy Gray
Baird, a tributo do Distrito 12 por quem Coriolanus fica responsável quando se
torna um mentor dos Jogos Vorazes. Se Coriolanus é produto do sistema, criado
para acreditar no que acredita e para reproduzir isso eternamente, Sejanus
Plinth e Lucy Gray são os pontos fora da curva, aqueles que poderiam ter mudado
a história de Snow, se ele os tivesse permitido.
Mas ele não
o fez.
Dividido em
três partes, “A Cantiga dos Pássaros e
das Serpentes” quase parece dois
livros diferentes. Nas duas primeiras partes, “O Mentor” e “O Prêmio”,
acompanhamos a 10ª edição dos Jogos Vorazes a partir da Capital, enquanto vemos
o evento começar a se transformar no
“espetáculo” que conhecemos originalmente (a proposta é que os mentores, todos
alunos da Academia, tornem os Jogos mais atrativos
para que as pessoas queiram assistir,
e assim surgem as apresentações, as entrevistas, as apostas, os envios para os
tributos…). A terceira e última parte, “O
Pacificador”, traz não apenas uma mudança de cenário (porque Coriolanus é enviado para o Distrito 12 para
trabalhar), mas uma mudança aparentemente drástica na história e no ritmo…
É quase um spin-off do livro, mas incrivelmente
amarrado, eventualmente.
Enquanto
Coriolanus está empolgado com a
“grande oportunidade” de ser um mentor nos Jogos Vorazes, porque essa é a sua
grande chance de conseguir uma bolsa para a universidade e continuar fingindo
para todos que os Snow são uma família influente (em breve eles perderão até o
apartamento, graças aos impostos crescentes da Capital), nem todos os seus
companheiros compartilham da sua mesma empolgação… Sejanus Plinth é o símbolo
da “revolução” dentro da Academia e da Capital: humano e gato (porque não dá,
eu o imagino muito gato e, na minha cabeça, ele é gay também), ele é um
personagem envolvente, corajoso e possivelmente imprudente, mas Sejanus não é o único aluno da Academia que não
curte os Jogos Vorazes e acha isso tudo um absurdo.
Embora ele seja o único que tem coragem de
enfrentar a tenebrosa Dra. Gaul.
Se os Jogos
Vorazes sempre foram macabros, assustadores e revoltantes, desde que ouvimos
falar deles pela primeira vez, a sua versão em “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” é ainda mais perturbadora,
porque é uma versão crua – ainda mais
brutal, insensível e animalesca. Tanto que os Tributos, sempre menosprezados
como “seres inferiores”, são, aqui, literalmente tratados como animais… eles
são transportados para a Capital em um vagão fechado de gado e despejados na
jaula dos macacos no zoológico, onde ficam presos e recebem visitas de
moradores da Capital que não os veem como
pessoas de verdade. A crueldade e a frieza com que a autora escreve essas
cenas causam uma sensação de repúdio. É repugnante e desconfortável ler.
Mas é
justamente essa a intenção.
Esse é um
dos momentos em que Sejanus Plinth brilha
no livro pela primeira vez: ele é o único que realmente enxerga os Tributos como pessoas, e vai até o zoológico com uma bolsa cheia de sanduíches
para tentar alimentá-los, embora eles não confiem nele, e ele nem mesmo quer
falar com a imprensa… porque Coriolanus também está por perto, também está
falando com Lucy Gray e acaba ajudando Sejanus a distribuir os sanduíches, mas
tudo porque ele quer fazer um espetáculo em sua própria homenagem: ele quer
chamar atenção, ele quer se beneficiar disso, ele não se importa de verdade com
os Tributos… e Lucy Gray chamou a atenção desde o primeiríssimo momento,
durante a Colheita, com seu vestido colorido, sua serpente, sua canção e toda
sua encenação.
Ela é um verdadeiro espetáculo.
Os dias que
os Tributos passam em “exposição” no zoológico da Capital são um jogo perverso.
Existe a tentativa de espetacularização dos Jogos Vorazes, e as crianças
parecem fascinadas com Lucy Gray e seu vestido colorido, por exemplo, mas as
coisas mudam quando uma tributo mata Arachne, uma das mentoras da Academia, e a
Capital reage a isso transformando o seu funeral em um espetáculo de
retaliação, com o corpo da tributo que a matou em exposição da maneira mais
degradante possível… é revoltante que não se leve em conta o que até Coriolanus
percebeu: a culpa de Arachne na própria
morte, provocando seu tributo com um sanduíche, e é uma ironia perversa a
Capital falando sobre a “morte injusta” de uma de suas crianças, enquanto
trouxe 24 dos Distritos para se matarem na arena.
Assistir às
atitudes da Capital a partir do ponto de vista dos Distritos, que foi o que
fizemos com Katniss e Peeta em “Jogos
Vorazes”, “Em Chamas” e “A Esperança” é horrível e revoltante.
Presenciar as mesmas atitudes a partir da própria Capital ao lado de alguém que
a apoia é ainda mais assustador,
porque revela um lado perverso da “humanidade”, em um fanatismo violento e
mortal que, infelizmente, não é distante do que já vivenciamos na vida real…
tivemos quatro anos de desgoverno recente em nosso país onde seguidores de um
político perverso e incompetente aplaudiram e defenderam o que quer que ele
fizesse… ler “A Cantiga dos Pássaros e
das Serpentes” e perceber que não é
apenas uma “fantasia” é o que o torna tão dolorosamente real e faz com que
o livro converse tanto conosco.
Mesmo antes
do início dos Jogos Vorazes, muitas mortes acontecem na Capital – não apenas
entre Tributos, mas também entre Mentores. Em uma visita à arena, por exemplo,
bombas supostamente plantadas por rebeldes custam algumas vidas… Marcus, o
tributo do Distrito 2 por quem Sejanus está responsável, consegue escapar,
enquanto Lucy Gray salva a vida de Coriolanus, e vários outros tributos morrem,
enquanto alguns ficam em um estado tão deplorável que morrem nos dias
seguintes, já que a Capital não vê nenhuma necessidade de cuidar deles como os mentores feridos são cuidados. Para eles,
apenas uma veterinária é enviada ao zoológico (!), e não há muito que ela possa
fazer para salvar a vida das pessoas… os Jogos Vorazes começam mesmo antes da
abertura.
Durante os
dias que Lucy Gray passa na Capital antes de entrar na arena, ela e Coriolanus
Snow forjam uma relação quase surpreendente, na qual ela quase parece capaz de
mudar a opinião dele a respeito das pessoas dos Distritos – embora, como membro
do Bando, ela não seja realmente de
Distrito, apenas presa no Distrito 12 depois da guerra. Lucy Gray tem um
magnetismo impressionante que fez com que todos prestassem atenção nela e ela
se converte na favorita da Capital, que está fascinado com as suas cores e com as suas músicas… e Coriolanus
sabe exatamente como aproveitar isso, no zoológico ou na entrevista, para
conseguir mais e mais doações para ela. Na despedida, os dois se beijam depois
de uma tensão constante e bem construída, e ele a deixa com o pó compacto que pertencera à mãe…
Como se
fosse algo que ela precisa devolver.
E, para
isso, precisa sobreviver à arena.
As chances
de Lucy Gray não pareciam assim tão boas, inicialmente, mas o banho de sangue
que antecedeu aquela edição dos Jogos
Vorazes acabou jogando a seu favor, com Tributos fortes sendo assassinados
enquanto tentavam fugir, ou mortos pela bomba no dia da visita à arena. Ainda
assim, a Capital (e a Dra. Gaul) encontra uma maneira de tornar a abertura dos
Jogos violenta e cruel, com a brutal exposição do corpo de Marcus, o Tributo do
Distrito 2 que tinha conseguido fugir… é tão absurdo, tão nojento e tão
horrível que é difícil de descrever o que senti enquanto lia, incrédulo, essa
passagem. Felizmente, temos Sejanus Plinth para reagir mais ou menos como
gostaríamos de reagir, jogando uma cadeira na tela dos Jogos Vorazes, chamando
todo mundo de monstro e saindo dali.
Em termos
narrativos, Suzanne Collins não se contenta com uma simples “repetição” do que
fez sucesso em “Jogos Vorazes”. “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”
é uma constante caixinha de surpresas, com reviravoltas macabras e inesperadas,
e uma inversão na própria narração, já que, dessa vez, não estamos dentro da arena junto com os tributos, mas do lado de fora,
como espectadores… a não ser quando Sejanus resolve entrar na arena para
tentar dar a Marcus alguma dignidade depois da morte, fazendo o que se
costumava fazer com os mortos no Distrito 2, de onde ambos vieram. E, durante
toda essa sequência, embora ele estivesse sendo totalmente inconsequente, eu
fiquei gritando para mim mesmo: SEJANUS É MUITO PROTAGONISTA.
É
desesperador ver Sejanus Plinth dentro da arena, e queremos fazer qualquer coisa para tirar ele de lá – e
quem recebe essa função é Coriolanus Snow. Ele não tem muita escolha, na
verdade, e sabe que a Dra. Gaul pode até matá-lo (a sequência de Clemensia com
as serpentes coloridas da Dra. Gaul é desesperadora
também, e Snow a presenciou e sabe do que ela é capaz), mas, no fundo, de
alguma maneira distorcida, é como se ele se importasse de verdade com Sejanus…
ou acreditávamos que sim, na época. Essa “amizade” deles é algo fortíssimo e
que conduz várias das partes mais importantes de “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”, principalmente na reta
final, e em parte eu acho que Coriolanus não sabe fazer com sentimentos verdadeiros, e por isso faz tudo que
faz.
Enfim.
Uma vez
dentro da arena, Coriolanus precisa convencer
Sejanus a sair sem alarmar os Tributos, porque eles se tornarão alvos fáceis e
acabarão sendo mortos lá dentro, como qualquer tributo, mas Sejanus está
disposto a morrer como uma forma de protesto ou qualquer coisa assim…
persuasivo (uma grande característica dele), Coriolanus diz a Sejanus que eles
nem vão mostrar a sua morte na transmissão e que sua morte vai ser em vão (o
que não é mentira), e só do lado de fora, com o dinheiro que a família tem, ele
pode realmente fazer a diferença e,
quem sabe, um dia lutar pelos Tributos e pelos Distritos, como ele quer. A
sequência é MARAVILHOSA, e Coriolanus convence Sejanus e eles escapam por pouco
da morte certa com o ataque brutal dos Tributos.
Pior ainda
do que Coriolanus Snow (e, consequentemente, quem ajudou a moldá-lo como o
conheceremos como Presidente Snow em “Jogos
Vorazes”, e estamos vendo isso se construir brilhantemente) é a Dra. Gaul.
Sanguinária e doentia, ela pensa em tudo friamente, e queria que Coriolanus tivesse essa experiência dentro da arena para
lembrá-lo, por exemplo, da questão do “controle”: ela queria que Coriolanus
quisesse os Tributos mortos como eles o querem morto, e queria mostrar o que
ela acredita ser a verdadeira natureza do ser humano, quando se é desprovido de
qualquer amarra ou convenção… naquela
arena, quando não existe “controle”, o “caos” impera e no que eles se
transformam? É uma alegoria distorcida que ela usa para justificar os Jogos
Vorazes.
E que será
usada por anos, como sabemos.
A 10ª edição
dos Jogos Vorazes é um verdadeiro experimento.
Em determinado momento, por exemplo, a Dra. Gaul resolve enviar para a arena
suas serpentes multicoloridas como forma de retaliação, e Coriolanus age por
impulso colocando dentro do tanque um lenço com o DNA de Lucy Gray porque sabe,
por experiência, que aquelas serpentes não atacarão Lucy Gray se o seu cheiro
for conhecido… e isso salva a sua vida, em uma sequência que traz Lucy Gray
cantando e “encantando” as serpentes, que se reúnem em seu vestido dando-lhe
uma saia ondulante e tenebrosa… e, assim, os Jogos Vorazes se aproximam do
final. Mortes pelas serpentes. Mortes por veneno de rato que Lucy Gray levou
escondido no pó compacto da mãe de Coriolanus. Mortes por drones alterados…
No fim, Lucy
Gray Baird é A GRANDE VENCEDORA DOS JOGOS VORAZES, e Suzanna Collins fez com
que tudo fosse convincente. Os Jogos
Vorazes são construídos em cima de um suspense crescente e de ação eletrizante,
e acreditamos na vitória de Lucy Gray, mesmo contra as expectativas iniciais,
porque tudo foi construído para chegar àquele momento… com uma ajudinha de
Coriolanus Snow, sim. Quando Lucy Gray é oficialmente declarada a vitoriosa, os minutos de pura
felicidade de Coriolanus (que pensa ter conquistado a glória, o futuro e o
amor) duram pouco, porque uma reunião com Highbottom faz tudo ir por água
abaixo, e Coriolanus sabe disso ao ver, sobre a mesa do reitor, três objetos: o pó compacto da mãe, um guardanapo da
Academia e o lenço de Lucy Gray.
É
interessante como tudo é extremamente
rápido, reproduzindo mais ou menos o que o próprio Coriolanus sentiu. Em um
momento, ele está se refestelando na glória da vitória e de um futuro
promissor… poucas linhas depois, tudo desmoronou e, na página seguinte,
Coriolanus está em um trem rumo ao Distrito 12 e a uma vida como Pacificador. A
rapidez com poucos detalhes causa uma sensação de desconcerto que emula as
emoções do próprio Coryo, embora eventualmente a autora retorne para nos
mostrar como foi a conversa de Coriolanus e Highbottom e a reação da prima…
agora, vemos Coriolanus em um novo cenário, sentindo que a sua vida acabou,
preso a uma rotina chata e sem promessa de um bom futuro, e enquanto ele está enrolado na cama querendo morrer, ele
tem uma surpresa.
A chegada de
Sejanus Plinth ao Distrito 12 como Pacificador é um dos momentos mais emocionantes
de “A Cantiga dos Pássaros e das
Serpentes” na minha opinião. É um dos raros momentos em que Coriolanus não está interpretando um personagem,
porque ele sente que não há mais por que
fazer isso, e existe um alívio estampado na maneira como ele pula do beliche e abraça Sejanus (algo que ele
provavelmente jamais faria em outra situação) ao ouvir sua voz familiar no
dormitório… eu amo o Sejanus, de verdade. Vemos, em sua chegada ao Distrito 12,
um Sejanus mais leve, mais feliz, mais esperançoso porque está finalmente fora da Capital, onde ele nunca se
sentiu em casa, mas eventualmente ele percebe que as coisas ali não vão ser
muito melhores…
Ele está trabalhando para a Capital ainda. E
um enforcamento o lembra disso.
Como
comentei anteriormente, a terceira e última parte do livro parece quase algo à parte. Enquanto lia, a mudança
abrupta e proposital (que reflete a mudança na vida e na perspectiva de
Coriolanus Snow) me pegou desprevenido… é, curiosamente, talvez a vez que passamos mais tempo no Distrito 12 e
podemos conhecer o Prego, por exemplo, onde o Bando toca todo sábado, e onde os
Pacificadores vão para se divertir. E é onde Coriolanus pretende reencontrar
Lucy Gray. É surpreendentemente bonito e emocionante o momento em que eles se
veem novamente pela primeira vez depois dos Jogos Vorazes: primeiro, Coriolanus
a vê no palco, cantando; Lucy Gray só o vê depois, e a expressão no seu rosto
vai da confusão ao reconhecimento e, por fim, à alegria.
Depois de
vê-lo, ela canta a mesma música que cantara no zoológico, e diz que “aquela é a
melhor noite da sua vida”, o que o deixa profundamente feliz… o reencontro
real, depois de uma confusão no Prego que obriga os Pacificadores a irem
embora, acontece apenas no outro dia, na Campina, e é melhor do que Coriolanus
esperou, porque eles estão sozinhos. É muito incerto qual era o plano de
Coriolanus quando pediu para ser mandado para o Distrito 12 quando foi obrigado
a se tornar um Pacificador, mas, naquele momento, ele parece querer viver
aquilo com Lucy Gray, aquele sentimento que surgiu antes dos Jogos Vorazes,
enquanto eles interagiam como Tributo e Mentor. Mas não poderia ter dado certo…
na verdade, eles sempre foram muito
diferentes.
Eles sempre acreditaram em coisas
diferentes.
A última
parte do livro é a conversão total de Coriolanus Snow na pessoa que conhecemos,
e vemos como pequenos detalhes vão ajudando a moldá-lo, mas sempre com base em
de onde ele veio – a sua criação na Capital e pelos Snow o fez quem ele é,
assim como o fato de Sejanus Plinth ter vindo de Distrito, embora morar na
Capital há anos, o faz quem ele é. Vemos Coriolanus interceptar uma conversa de
Sejanus com Billy Taupe, um “rebelde”, e depois descobrir que Sejanus estava escondendo
dinheiro por algum motivo e, a partir de então, Coriolanus deixa de confiar em
Sejanus e o vê como “mentiroso, duas caras e dissimulado”. Coriolanus também
está incomodado com a presença de Billy Taupe, com as músicas do Bando, e com
os tordos…
Os gaios
tagarelas, bestantes construídos pela Capital na época da guerra para espionar
rebeldes, e os tordos, com quem os gaios tagarelas acasalaram, criando uma nova
espécie, desempenham um papel importante na reta final de “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”, tanto literal quanto
simbolicamente. Coriolanus simpatiza com os gaios tagarelas, mas tem pavor dos tordos, que ele considera algo
que surgiu e se espalhou sem a anuência e sem o controle da Capital… é, para
ele, um símbolo de tudo o que ele despreza. E
é interessante que Suzanne Collins adicione esse asco de Snow por tordos desde
sua juventude – afinal de contas, isso intensifica o ódio mortal que ele
sente de Katniss Everdeen quando ela assume esse símbolo de revolução.
Coriolanus
usa um gaio tagarela para deliberadamente denunciar Sejanus. Sejanus sempre foi uma pessoa intrinsecamente
boa, preocupada com os demais, mas também ingênuo, e o fato de ele confiar
tanto em Coriolanus e vê-lo como um “irmão” é o que lhe garante a ruína… como
Coriolanus sabe que nada do que ele disser vai dissuadir Sejanus da sua ideia
de “colaborar com rebeldes”, Coriolanus deixa que ele faça a sua confissão e
coloca um gaio tagarela que está em uma gaiola indo para a Capital no dia seguinte para gravar tudo o que ele está
dizendo. É uma traição imperdoável, especialmente porque Coriolanus tem a oportunidade de apagar a gravação
depois de perceber que o plano de Sejanus não apresenta risco nenhum para a
Capital…
Mas não o
faz.
Sejanus só queria ir embora e ser feliz no norte,
longe do controle da Capital.
Apesar das
possibilidades que são, sim, apresentadas para Coriolanus Snow, ele nunca deixa
de ser o Snow que conhecemos… ele nunca deixa de lado a criação que recebeu na
Capital, ele nunca deixa de acreditar em seus princípios e de defender as
atrocidades que são cometidas por ela. Em algum momento, Coriolanus e Lucy Gray
têm uma pequena briga por causa de como eles pensam diferente, na qual Coriolanus defende a Capital a ponto de defender
os Jogos Vorazes, porque ele acha que os Distritos merecem mesmo ser punidos
pela guerra e constantemente lembrados de quem está no comando. De alguma
maneira, no entanto, Lucy Gray ainda
gosta dele, ainda confia nele, talvez porque veja a possibilidade dentro
dele. Coriolanus tinha dois lados dentro
de si e precisava escolher.
A escolha ainda não era definitiva. Em breve
seria.
A reta final
de “A Cantiga dos Pássaros e das
Serpentes” traz tanta ação desenfreada que é praticamente impossível largar o livro, porque
queremos saber o resultado daquelas confusões todas, quando Coriolanus segue
Sejanus para fora do Prego em um sábado à noite, por exemplo, e o vê
conversando com Billy Taupe. Logo Lucy Gray também está ali, e Mayfair, a filha
do prefeito, a garota que detesta Lucy Gray e que é o motivo de ela ter ido
para os Jogos Vorazes, para começo de conversa… e, por impulso e para “proteger
Lucy Gray”, Coriolanus atira em Mayfair; logo depois, Billy Taupe também é
assassinado e sentimos que tudo está desmoronando perigosamente, e tudo graças
ao Coriolanus, de certa maneira. Ninguém
sabe o que vai acontecer.
Mas muito
pior do que aquele sábado tenebroso no Prego são os acontecimentos da semana
que se segue… primeiro, Spruce, um rebelde, é preso pelos Pacificadores e, logo
depois, Sejanus. E, então, Coriolanus
sabe que a Dra. Gaul recebeu o seu gaio tagarela com a confissão de Sejanus, e
logo ele e os demais são informados de que ele será enforcado por traição.
Tudo é excessivamente rápido, de uma maneira que intensifica o choque da
sequência, e é particularmente doloroso presenciar a morte de Sejanus Plinth,
até porque ele era o meu personagem favorito, e possivelmente a melhor pessoa
que Coriolanus conheceu. E ele o matou.
A execução injusta de Sejanus na forca e os gaios tagarelas repetindo a sua
última palavra (“Mãezinha!”) é brutal
e cruel.
Eu tive que parar um pouco a leitura e
assimilar tudo.
Esse é o
destino de Coriolanus, o destino que ele escolheu: ele acabou de matar o único amigo de verdade que ele tinha, e sabemos
que ele também vai perder Lucy Gray, que era alguém que o amava de verdade e
com quem ele poderia ter sido feliz… deliberadamente, Coriolanus ESCOLHE
abrir mão disso tudo em troca de dinheiro, poder e controle. A injustiça é acentuada pela maneira como Sejanus é elogiado por sua atitude pelo
comandante, que enfatiza a sua “lealdade à Capital” e o seu “sacrifício
pessoal” ao entregar um amigo, quase um irmão, ou por Lucy Gray, que canta em
sua homenagem no Prego, usando o vestido de arco-íris da Colheita, preocupada
com como Coriolanus está depois da morte de Sejanus, porque sabia o quanto eles
eram próximos…
Naquele dia,
Lucy Gray se despede de Coriolanus e anuncia que está fugindo para o norte,
exatamente como Sejanus sonhava em fazer, porque o prefeito está tentando ligá-la
à morte de Mayfair e não vai descansar enquanto não conseguir… com medo de a
arma que matou Mayfair ser encontrada e o assassinato ser ligado a ele e,
consequentemente, ele ser acusado de estar “confraternizando com rebeldes” ou
qualquer coisa assim, Coriolanus decide que sua única alternativa é fazer o
mesmo, e fugir para o norte com Lucy Gray. É perversamente irônico que ele
sonhe com a liberdade no norte com Lucy Gray, sendo que isso era a única coisa
que Sejanus queria, e Coriolanus tirou isso dele, mas ele prepara tudo para
fugir, logo que é informado que partirá no dia seguinte para a escola de
oficiais…
Aquela era a
sua “segunda chance” de ter um “futuro brilhante”, mas ele não se permite
sonhar com isso porque acha que a arma que matou Mayfair vai ser eventualmente
encontrada e ligada a ele, então ele foge com Lucy Gray, porque essa é “sua
única alternativa”. As páginas finais de “A
Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” são aceleradas, perturbadoras e
desconcertantes, enquanto vemos tudo se transformar doentiamente. Quando
Coriolanus descobre, na casa do lago, a arma que ele tanto teme ser encontrada
e percebe que ele tem a chance de se livrar dela e, consequentemente, voltar
para a base e partir para a escola de oficiais no dia seguinte, ele se transforma
em um verdadeiro animal, deixando vir à tona o mesmo Coriolanus que tomou conta
dele na arena.
Naquele
momento, Coriolanus está desprovido de qualquer humanidade, de qualquer
encenação, de qualquer vergonha ou culpa. Visceral, assustador e perturbado,
Coriolanus promove uma verdadeira caçada
a Lucy Gray, porque não pode permitir
que ela acabe com “o seu futuro brilhante de glória e poder”, e ela é a única
ponta solta que pode ligá-lo aos assassinatos do Prego. E ele quer acabar com ela. Cego e violento, Coriolanus transforma
aquela caçada a Lucy Gray nos seus “Jogos Vorazes particulares”, e temos uma
representação tão dolorosamente crua
do que o ser humano é capaz que chega a ser angustiante de se ler… e nunca
saberemos, inclusive, se Lucy Gray sobreviveu àquela caçada e ao tiro que
Coriolanus disparou e acha que a acertou.
É um mistério eterno, como a garota da
música que deu a Lucy Gray seu nome.
“É um mistério, querida. Como eu. É por isso
que é a minha música”
As últimas
páginas de “A Cantiga dos Pássaros e das
Serpentes” são propositalmente feitas para chocar. Cuidadosamente construído para ser um relato nefasto e
irônico, que beira a caricatura, o final do livro leva Coriolanus Snow de volta
à Capital depois de suas “férias de verão no Distrito 12”, e descobrimos que
toda a sua incursão como Pacificador foi parte de um plano da Dra. Gaul,
exatamente como ela o mandou à arena para resgatar Sejanus Plinth… tinha coisas
que ela queria que ele visse, entendesse e sentisse, antes de trazê-lo de volta
à Capital para ser sua tutora enquanto ele prossegue com seus estudos na
Universidade. Acho profundamente incômodo e perturbador que sejam os Plinth a
bancarem Coriolanus agora, enquanto ele chama a mãe de Sejanus de “mãezinha”,
como Sejanus a chamava.
Difícil
colocar em palavras o quanto isso é errado e doentio.
Mas Coriolanus não se importa.
“A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”
faz um trabalho EXCELENTE, de fato, ao estabelecer as fundações dos Jogos
Vorazes como o conhecemos, mas, mais do que isso, do jovem que mais tarde se
tornará o Presidente Snow: um homem sem escrúpulos, sem humanidade, uma versão piorada da já tenebrosa Dra. Gaul; um
homem sem amor, sem amigos, fascinado pelo poder e pela sensação de controle.
São poucas páginas que mostram Coriolanus Snow “coringando” oficialmente, mas
são o suficiente: é necessária muita frieza para matar o reitor Highbottom como
ele mata, colocando veneno de rato no seu remédio, e mais frieza ainda para
suportar viver consigo mesmo enquanto aceita ajuda, carinho e amor sincero da
mulher cujo filho ele mesmo matou…
Filho esse
que confiava nele como em um irmão e
ele traiu.
Toda a
construção para a reta final e toda a intensidade
das últimas páginas de “A Cantiga dos
Pássaros e das Serpentes” me deixaram em choque. Perplexo, eu fechei o
livro em silêncio atônito, e assim fiquei por algum tempo… havia muito a
processar, e eu me sentia mexido e abalado.
Só conseguia pensar em como era perverso, doentio, revoltante, e em como eu não
acreditava naquelas últimas páginas sanguinolentas. É uma experiência e tanto,
no entanto. A escrita competente de Suzanne Collins, mesmo nos momentos mais desafiadores,
e a crítica ferrenha através de um universo distópico que ela construiu e
expandiu tão bem fazem desse livro uma excelente prequel para a trilogia “Jogos
Vorazes”. Leitura necessária para
qualquer fã da trilogia original e do gênero!
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