Hoje é dia de Maria, Primeira Jornada – Episódio 1: No Sol Levante


“E com essa chavinha, eu hei de encontrar meu 'tesoro'. Que se esconde em um dos caminho' das franja' do mar”

 

Uma das mais belas obras de arte da televisão brasileira. “Hoje é dia de Maria”, minissérie exibida originalmente em 2005 pela TV Globo, é uma história dolorosa sobre a vida, a infância e as alegrias e os traumas que fazem parte dela. Com uma fotografia belíssima e uma linguagem inovadora para a televisão, que se aproxima demais do lírico e do teatral, “Hoje é dia de Maria” chamou a atenção na época de sua exibição (rendeu, inclusive, uma indicação ao Emmy de Melhor Atriz para Carolina Oliveira, merecidamente), e é até hoje recordada com carinho e com amor por quem a acompanhou e viveu ao lado de Maria. Emocionante, poética e dolorosa, a minissérie lida constantemente com sentimentos de melancolia que ela nos obriga a encarar de frente.

Certamente, um dos grandes destaques de “Hoje é dia de Maria” é a sua estética. Filmado em uma redoma de “céu pintado”, a minissérie abraça recursos comuns do teatro, gerando uma beleza quase inesperada na maneira como impõe verdade e intensidade à sua história, ao mesmo tempo em que brinca com o lúdico… é isso o que gera a poesia de “Hoje é dia de Maria”, talvez essencial para contar uma história que, na verdade, é profundamente triste e pesada. Há tanta força nesse equilíbrio perfeito que a minissérie inevitavelmente se torna marcante. Lembro-me de tê-la visto pela primeira vez em 2005, e me causou uma impressão tão grande e tão duradoura que ela é, e provavelmente sempre vai ser, uma das minhas obras favoritas na teledramaturgia brasileira.

“No Sol Levante”, o primeiro episódio de “Hoje é dia de Maria”, começa nos apresentando os personagens de maneira cadenciada e clara. Vemos Maria em toda sua força e inocência, brincando pelo sítio devastado da família; vemos o Pai, bêbado e destruído com a morte da esposa, mesmo que ela tenha acontecido há alguns anos; e vemos a viúva de uma propriedade próxima, futura Madrasta de Maria, interessada em casar-se com o viúvo sofrido que ali vive. As cenas de Maria com o pai bêbado são golpes inesperados e traumatizantes que marcam o sofrimento constante dessa garota, que encontra bondade o suficiente em seu coração para rezar por ele, mas que não deixa de sentir medo e pavor quando ele se aproxima, porque não sabe como ele estará.

A mescla perfeita entre dor, bondade e inocência de Maria é justamente o que a Viúva, interpretada por Fernanda Montenegro, usa a seu favor para convencer a garota a conversar com o pai e sugerir que ele se case com ela. É triste vê-la iludida por um favo de mel, e pior ainda pensar que ela não faria nada disso se não estivesse ela mesma desesperada para escapar do monstro no qual o pai se transforma quando ele bebe – e bebe constantemente. O próprio Pai sabe que a viúva enganou Maria agora com mel para, mais tarde, dar-lhe o fel, mas não parece o suficiente para impedi-lo de seguir adiante com o casamento, e quando ele sai para pedir um empréstimo no banco e passa dias fora de casa, a vida de Maria se transforma realmente em um inferno.

A Madrasta, perversa, a coloca para trabalhar incessantemente, desempenhando todos os trabalhos necessários no sítio, dentro e fora de casa, enquanto ela e a filha ficam sem fazer nada. Carolina Oliveira arrasa em toda cena de olhos cheios d’água, desejando uma vida diferente da que tem, e sentindo falta da mãe, o que culmina em uma cena lindíssima na qual ela é visitada pela Nossa Senhora da Conceição, uma protetora atenciosa e carinhosa que lhe fala sobre a Mãe, e incentiva Maria, quem sabe, a seguir um sonho antigo e buscar as tais “franja do mar”. Afinal de contas, nada além de sofrimento para aguardá-la no antigo sítio de sua família, agora mais do que nunca, então talvez seja hora de ela pegar a chavinha em sua corrente e ir em busca do seu “tesouro”.

O sofrimento de Maria graças aos trabalhos forçados constantes a levam a um dos momentos mais tristes desse primeiro episódio de “Hoje é dia de Maria” quando, depois de encontrar Maria “dormindo” (na verdade, desmaiada graças ao sol quente e ao trabalho excessivo), a Madrasta a bate. Há um contorno teatral e poético que, surpreendentemente, não diminui o impacto da sequência, porque o uso do lúdico, quando a Madrasta sopra a “arminha” de Maria em casa (a sua alma representada pela vela que ela acende diariamente para a santa), intensifica a crueldade e a frieza de uma mulher mesquinha que acabou de matar uma criança – como a Narradora, a incrível Laura Cardoso, nos informa, ao dizer que uma grama muito verde nasceu no lugar onde Maria faleceu.

Quando o Pai retorna de sua viagem à cidade e ao banco, a Madrasta lhe diz que “Maria saiu no mundo”, e embora ele fique inicialmente revoltado e pense na ingratidão da filha a quem sempre deu tudo (a ironia perversa desse texto), ele sai para buscá-la e escuta sua voz cantando em um lugar onde a grama está mais verde do que em todo o resto do sítio – a música usada perfeitamente para intensificar os sentimentos de dor e melancolia que sempre acompanham “Hoje é dia de Maria”. Então, o Pai descobre a filha enterrada, no que deve ser o momento mais chocante desse primeiro episódio, e, ao desenterrá-la, ele a traz de volta à vida: a vela, que é a sua alma, se acende sozinha de volta em casa, e Maria abre os olhos e abraça o pai, aliviada ao ser revivida.

Mas, é claro, a sua vida não deixou de ser um inferno… horrorizada ao ver a garota que matara viva em sua frente, a Madrasta não repensa suas atitudes, e nem mesmo o medo do aparentemente inexplicável a faz tratar Maria de maneira diferente, e enquanto uma briga acalorada entre o Pai e a Madrasta se desenrola na sala, Maria decide não ficar para trás apenas ouvindo aquilo tudo: aquele já não é mais o seu lugar no mundo. Arrumando a sua clássica trouxinha que é parte da caracterização de Maria, ela foge pela janela rumo a uma jornada sozinha, em busca das franjas do mar e do que quer que ela encontre pelo caminho… e, assim, começa uma das melhores histórias da televisão brasileira, contada de uma maneira bela e única.

 

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Comentários

  1. Sempre quis ver, mas nunca deu certo, rsrs... Quem sabe agora...

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    1. Ah, eu sempre amei Hoje é dia de Maria. Tipo muito muito mesmo haha Vou postar um texto por semana, um sobre cada episódio (são 8 na primeira "jornada" e 5 na segunda).

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