Sandman, Volume 5 – Um Jogo de Você (Sobre o mar, rumo ao céu / Eu acordei e um de nós estava chorando)

Devastador.

Eu adoro ler “Sandman” – mas acho que nenhuma outra edição ou arco, até agora, me destruiu tanto quanto a conclusão de “Um Jogo de Você”. A melancolia impera com um quê de revolta e indignação, e a sensação de perda é imensa, graças a esses personagens a quem nos afeiçoamos e esse toque de realidade brutal da qual Neil Gaiman imbui sua trama. Belo, intenso, filosófico, poético, devastador. Adjetivos por vezes contraditórios que expressam todas nossas emoções igualmente paradoxais que acompanham a leitura de “Um Jogo de Você”, mais um excelente arco de “Sandman”, a HQ que redefiniu o gênero para o público adulto e marcou gerações – por vezes eletrizante e frenética; em outras, calma, sábia e reflexiva. Uma combinação complicada e perfeita.

O quinto capítulo de “Um Jogo de Você”, intitulado “Sobre o mar, rumo ao céu”, é uma daquelas edições de “Sandman” cujas páginas excedem o número habitual de páginas – e é uma sequência de revelações, ameaças, ação e quase uma conclusão para a história iniciada há algumas edições. Chegando à Cidadela do Cuco, após a traição de Luz, a Princesa Bárbara é confrontada com uma realidade aterradora: o Cuco é uma parte dela. Com a aparência do seu eu criança, habitando a casa que a própria Bárbara habitara na infância, o Cuco foi criado e “abandonado” por ela na “Terra”, de onde ela quer fugir agora, para que possa voar e conhecer tudo o mais que se há para conhecer no mundo… para isso, ela terá que matar Bárbara e destruir a própria Terra.

Enquanto Cuco tenta colocar em ação seu plano (convencendo Bárbara a colaborar com ela), Thessaly conduz Foxglove e Hazel através daquela terra é o lugar onde Bárbara vai pra sonhar, mas que ela duvida que tenha sido criado por ela, porque parece muito mais antigo… é muito mais sólido que um sonho recente. A missão de Thessaly, aqui, não tem a ver necessariamente com ajudar ou “salvar” Bárbara, mas com encontrar o Cuco e “dar-lhe uma lição” – afinal de contas, o Cuco tentou lhe fazer mal. Ainda assim, Thessaly acredita que encontrarão Barbie no meio do caminho… e de fato elas a encontram, enquanto Cuco e Luz levam a Princesa para a Ilha dos Espinhos, o lugar de onde eles poderão invocar toda a destruição para aquela Terra antiga.

Cuco, no entanto, é uma criança astuta e perigosa, e engana Thessaly com facilidade para que ela acredite que Luz é o Cuco, e então continua conduzindo Bárbara para que ela use a Porpentina para destruir o hierograma, o outro símbolo que garante a existência daquele lugar. E, com a destruição em vista, Morfeus sabe que é chegado o seu momento: uma ilhota do Sonhar está à beira da destruição, e cabe a ele o seu julgamento e, quem sabe, a sua total aniquilação. Essa é a minha passagem favorita nesse quinto capítulo: imensa e intensa, é um daqueles momentos épicos e poéticos de “Sandman”, que traduz tão bem a grandiosidade e a maleabilidade do sonho. Morfeus acolhe todas as criaturas, a humana para quem criou aquele lugar, Alianora, e recolhe a ilhota em sua mão.

Enquanto isso, em Nova York, uma ventania terrível toma conta do mundo, e Wanda acolhe Maisie, aquela senhora que “não gosta de cachorro” que ela e Bárbara encontraram no metrô mais cedo. Toda essa sequência é muito importante para a conclusão de “Um Jogo de Você”, e é fascinante como a bondade de Wanda e a sua vontade de ajudar uma mulher que ela não conhece fazem com que ela proteja, de maneira definitiva, a própria Bárbara, sua grande amiga… a conversa de Wanda e Maisie é muito interessante e poderosa, e Maisie a alerta sobre como essa ventania toda “é apenas o começo”, até porque a ventania se transforma em uma tempestade e, eventualmente, o prédio no qual Wanda e as demais moravam acaba desmoronando.

E é isso o que nos conduz à torturante e aterradora conclusão de “Um Jogo de Você”, durante seu último capítulo: “Eu acordei e um de nós estava chorando”. Com a conclusão do capítulo anterior, com o desmoronamento do prédio, e com Bárbara em frente a um espelho, vestida de preto e desenhando um véu no rosto (!), imaginamos o que está a seguir, mas a edição, antes nos traz os últimos momentos de Bárbara e suas companheiras com Morfeus, o Senhor dos Sonhos, naquele lugar quase vazio onde antes estivera uma ilhota que era a Terra à qual Barbie ia “para sonhar”. Há tanta calma e tanta sabedoria no modo de Morfeus falar quando se recusa a matar o Cuco, mesmo que tenha querido matar Bárbara… até porque Bárbara tem parte da culpa por sua existência e sua vontade.

Foi ela que a manteve presa ali, mesmo quando chegou sua hora de voar.

Morfeus explica a Bárbara sobre um pacto que fizera com Alianora, a humana para quem aquela ilhota do Sonhar foi construída (será que ainda voltaremos a isso em algum momento de “Sandman”? Me parece uma história que ainda poderemos ver em mais detalhes em algum momento), e como a segunda parte desse pacto o obriga a conceder um desejo a Bárbara naquele momento… e ela pensa em qual é a sua melhor alternativa – e, por fim, escolhe deixar o Cuco livre, permitir que ele voe, como sempre quis voar. Tudo o que ela pede é que ela e as suas amigas sejam levadas de volta para casa, sãs e salvas… e é essa ideia de “sã e salva” que faz com que elas sobrevivam à queda do prédio em que moravam em Nova York, diferente de Wanda.

Infelizmente, é a morte de Wanda, que não estava “protegida” por Morfeus, que encerra “Um Jogo de Você” – E COMO FOI TRISTE LER ÀQUELAS PÁGINAS. Nos afeiçoamos demais à Wanda, queríamos ver mais dela, e perdê-la de maneira tão trágica e tão abrupta parece injusto, enquanto todas as demais sobrevivem. Para piorar, a interação de Bárbara com a família de Wanda entrega alguns dos momentos mais repugnantes da narrativa, porque eles nunca aceitaram quem Wanda realmente era. No fim, Bárbara foi a pessoa que mais a amou e, sem saber, não pôde protegê-la… e, se pensarmos sobre isso, Wanda só morreu porque, mesmo podendo sair do prédio, não quis deixar Bárbara para trás. Isso e a reescrita na lápide de Wanda, quando Bárbara altera seu nome para “Wanda”, são provas vivas de uma amizade verdadeira e de um amor sincero e puro.

Que história poderosa. Que amizade bonita.

Mas que final triste.

 

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