Sandman, Volume 6 – Três Setembros e um Janeiro / Termidor
“A loucura dele o mantém são”
“Sandman” é sempre uma experiência
fascinante… seja quando acompanhamos grandes arcos ambiciosos e fascinantes,
como “Estação das Brumas”, “Um Jogo de Você” ou o vindouro “Vidas Breves”, ou quando acompanhamos
histórias isoladas – contos nos quais
Neil Gaiman explora seus personagens, sua mitologia, o mundo dos sonhos, a
psique humana… sinto que algumas das melhores histórias de “Sandman” vieram de edições independentes, como a memorável e
sempre fascinante “Um Sonho de Mil Gatos”,
ou mesmo edições que estão oficialmente inseridas
dentro de arcos, mas que detém sua independência e nos encantam, como “O Som de Suas Asas” e “Homens de Boa Fortuna”, duas das minhas
edições favoritas em toda a história de “Sandman”.
Assim como o
terceiro volume de “Sandman”, “Terra dos Sonhos”, que reuniu algumas
edições que são contos que compartilham desse universo, o sexto volume de “Sandman” tem a mesma premissa: “Fábulas e Reflexões” reúne diferentes
edições independentes da publicação original, não necessariamente em ordem de
lançamento… e é um volume interessante que abre, ainda antes do Prefácio e da
Introdução, com um conto curto de Neil Gaiman, originalmente publicado em “Vertigo
Preview”: “Medo de Cair” traz a
história de Todd Faber, um escritor com medo de sua estreia, e que costuma ver
duas possibilidades quando ele está caindo em um sonho… morrer ou acordar. Ele, aprende, então, que existe uma terceira
alternativa, no fim das contas: voar.
Falarei a
respeito das diferentes edições presentes no Volume 6 de “Sandman” não necessariamente em ordem… e, por isso, começo com “Termidor”, uma edição macabra e
surpreendente que traz de volta uma personagem que já encontramos antes na
história do Senhor dos Sonhos: Johanna Constantine. Dessa vez, em 1794, Sonho
procura Johanna para lhe pedir um favor: ele quer a sua ajuda para resgatar a
cabeça de seu filho, Orfeu, que está presa no meio da Revolução Francesa, e ele
não pode interferir diretamente, por isso precisa de uma agente mortal que
possa fazer o trabalho por ele. Assim, acompanhamos Johanna Constantine, mestre
dos disfarces, enquanto se infiltra em uma prisão em Luxemburgo, onde corre o
risco de literalmente perder a cabeça…
A
perversidade irônica com que Neil Gaiman brinca com a ideia de “perder a
cabeça” é notável, e Johanna Constantine é uma personagem fascinante de se
acompanhar, é verdade… gosto particularmente do “embate” entre Johanna e
Robespierre, conforme o diário de Constantine lista alguns dos seus feitos mais
notórios, mas, ironicamente, Robespierre lista outros que a tornam ainda mais admirável. Sonho interfere
apenas dentro do que pode, do seu próprio domínio, dando a Johanna uma dica a
respeito da Canção de Orfeu enquanto
ela está vagando pelo Sonhar durante a noite, e acaba sendo isso o que salva a
sua vida e garante o sucesso na missão, com a cabeça de Orfeu resgatada e
levada de volta a Naxos, onde ele se despede de Johanna dizendo que sente saudade do pai…
“O que obtemos barato demais estimamos muito
pouco”
Para
comentar “Três Setembros e um Janeiro”,
eu me sinto no mesmo nível de pressão e responsabilidade de quando falei sobre “Homens de Boa Fortuna”: QUE EDIÇÃO
ESPETACULAR! “Três Setembros e um
Janeiro” é uma das melhores edições que li de “Sandman”, e o tipo de edição que me faz lembrar o porquê de eu amar tanto esse universo…
Neil Gaiman brinca com a história de Joshua Norton – ou melhor, Norton I,
Imperador dos Estados Unidos. Eu gosto muito
da mistura divertida e assombrosa da qual Neil Gaiman conseguiu imbuir sua
narrativa, mesclando elementos e estilos, e quando ele traz elementos reais para a narrativa (Joshua Norton de
fato existiu e de falto se autoproclamou “Imperador dos Estados Unidos), isso fica
ainda mais interessante.
É
inevitável, ao terminar de ler a história, ir em busca de mais informações de
Norton I, e é fascinante como Neil Gaiman traz isso do ponto de vista do seu
próprio universo – e como tudo se encaixa e faz perfeito sentido. Em “Sandman”, Joshua Norton era alguém
atormentado pelo Desespero em setembro de 1859, que acabou virando o avatar de
um “joguinho” proposto por Desespero, Desejo e Delírio ao seu irmão, Sonho.
Normalmente, Sonho e Morte não se envolvem nos jogos de seus irmãos, mas Sonho
acaba sendo tentado demais quando o irmão
mais velho é trazido à tona (informação importante para o futuro de “Sandman”), e resolve aceitar o desafio
de manter Joshua Norton longe dos domínios do Desespero até ser levada pela
irmã mais velha deles.
Sonho,
então, dá a Norton o que tantas pessoas sempre quiseram e o faz um Rei… ou um Imperador. É interessantíssimo como seria a
interferência de Sonho/Devaneio que faz com que Joshua Norton se proclame
Norton I, Imperador dos Estados Unidos, e como isso é algo que o mantém até o
dia da sua morte… a minha cena favorita da edição acontece em setembro de 1864,
depois de uma conversa com Mark Twain (!), quando Delírio está assistindo a
Norton I e percebe, ao contrário do que imaginava, que Norton, na verdade, não
pertence a ela, porque “a loucura dele o
mantém são”. ESSA É UMA DAS MELHORES FALAS DE “SANDMAN” DO INÍCIO AO FIM! É sensacional ter vislumbres externos
do que de fato está acontecendo, mas como Norton enxerga tudo…
Uma vibe meio Dom Quixote.
Em setembro
de 1875, Desejo também faz uma tentativa de atrair Norton I, usando o Rei da
Dor e tentando atraí-lo com os prazeres do mundo, e Norton os nega
poderosamente porque ele está feliz com o
que tem, em seu “devaneio” – o que deixa Desejo ainda mais furioso e com
ainda mais raiva de Sonho… se é que isso é possível. Por fim, chegamos a
janeiro de 1880, a morte de Norton I,
quando Sonho consagra sua vitória e recebe o reconhecimento, à sua maneira, de
Desespero: Desespero sempre acreditou que
Joshua Norton voltaria para o seu domínio, mas o poder do Sonho realmente o
deixou longe até o fim… mesmo quando ele está morrendo na sarjeta, embaixo da
chuva. Até porque Norton recebe a visita da Morte de uma maneira muito
leve…
Morte é e
sempre será uma das melhores personagens de “Sandman”.
A edição é
lindíssima, emocionante, inteligente, curiosa… única. Acho que ela se encaixa
perfeitamente à proposta de “reflexão” que o Volume 6 de “Sandman” traz. Terminei de ler “Três Setembros e um Janeiro” inesperadamente comovido, enquanto
lia aqueles últimos comentários a respeito do primeiro e último Imperador dos Estados Unidos, e as 10 mil pessoas
que compareceram para ver o seu caixão, e o cortejo fúnebre que se estendeu por
mais de três quilômetros… graças ao Sonho, Norton I viveu uma vida afastada do
Desespero, e tornou-se uma figura notável e amada pelas pessoas que o
conheceram – mesmo as que riam dele e “ele não se importava”. Que edição
poderosa. Eu adoro quando “Sandman”
me surpreende dessa maneira!
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