O Problema dos Três Corpos (Cixin Liu)

 

“[…] A humanidade teve sorte ao longo de toda sua história. Desde a Idade da Pedra até hoje, nunca aconteceu nenhuma crise de verdade. Tivemos sorte, muita sorte. Mas um dia isso teria que acabar. Vou mais longe: já acabou. Prepare-se para o pior”

 

Eu sempre fui apaixonado por ficção científica… eu cresci rodeado e fascinado por obras que nos faziam pensar no futuro, no passado, em outras realidades, outros planetas… não é à toa que “Star Trek” sempre foi uma das minhas séries favoritas no mundo; não é à toa que “Blade Runner” sempre gerou tanta curiosidade e fascínio; não é à toa que eu fui marcado profundamente por “The Matrix”, e até hoje acredito que esse filme mudou a maneira de se fazer ficção científica no cinema. Como um estudioso da literatura, formado em Letras e apaixonado pelo gênero de ficção científica, voltei minha pesquisa e minha dissertação de mestrado ao tema, inclusive, e eu posso dizer que o meu amor por essas histórias continua sempre crescendo.

Ler “O Problema dos Três Corpos” foi uma grata surpresa. Mais do que isso, foi uma experiência singular e transformadora. Sem exagero, eu me vi pensando, mais de uma vez durante a leitura, sobre como “eu nunca mais seria o mesmo depois de ler esse livro”. Acho que, em parte, esse é o poder que a boa literatura tem sobre a gente: a capacidade de nos marcar tanto que sentimos que já não somos os mesmos depois da leitura. O livro é poderoso na maneira inteligente, complexa e instigante como constrói o seu universo, como revela detalhes aos poucos, como nos cativa e nos envolve cuidadosa e gradualmente, mais ou menos como Wang Miao a partir do momento em que ele entra no Três Corpos pela primeira vez. Cada virar de página é uma nova descoberta…

Quando percebemos, estamos tão envolvidos que é impossível parar.

“O Problema dos Três Corpos”, escrito por Cixin Liu, foi publicado pela primeira vez de maneira serializada em uma revista de ficção científica, a Science Fiction World, em 2006, o que por si só eu acho incrível, porque remonta às origens da ficção científica como gênero literário, e ganhou sua primeira publicação como livro independente em 2008, dando início a uma trilogia chamada “Lembranças do Passado da Terra”, que conta com “A Floresta Sombria”, de 2008, e “O Fim da Morte”, de 2010, como sequências. O livro ganhou o Prêmio Galaxy, que é o prêmio mais importante para ficção científica na China, e, em 2015, “O Problema dos Três Corpos” ganhou o Prêmio Hugo de melhor romance, tornando Cixin Liu o primeiro autor não-anglófono a ganhar esse prêmio.

É, talvez, o melhor livro de ficção científica que eu já li na vida. Tenho consciência de que isso é uma afirmação com um peso imenso, mas eu acredito que Cixin Liu aproveitou o gênero de uma maneira que poucos outros fizeram… sem medo de debruçar-se sobre a ciência de fato, o autor trouxe muito de física, astronomia e engenharia à sua obra, sem recorrer à fantasia ou a deus ex-machinas que tirassem do livro o seu tom realista e científico. Quanto mais se conhece sobre os conceitos usados na concepção da premissa de “O Problema dos Três Corpos”, mais fascinante deve ter parecido o livro, mas é, também, extremamente prazeroso envolver-se nas explicações inteligentes do autor, que convidam o leitor a fazer parte desse universo, a entender esses conceitos…

A ficar curioso.

E, então, buscar saber e entender mais!

A história de “O Problema dos Três Corpos” começa no final dos anos 1960 e eu confesso que, como um leitor fora da China, eu tive um pouco de dificuldade com todo o conceito de Revolução Cultural, e senti a necessidade de estudar um pouco a respeito antes de prosseguir na leitura do livro, por causa de todo o impacto que isso tem na vida de Ye Wenjie (bem como na de Cixin Liu, segundo seu relato no Posfácio), uma das personagens principais do romance, que é uma figura recorrente durante a leitura, desde a Base Costa Vermelha nos anos 1970 e 1980, quanto no presente, quando ela retorna em uma conversa com Wang Miao após a morte de Yang Dong ou, é claro, como uma das líderes mais importantes da Organização Terra-Trissolaris.

O livro tem uma construção fascinante e eu acho lindíssimo ver como elementos que parecem inicialmente desconexos vão se costurando para criar uma narrativa coesa e intricada: a sensação de quase euforia que o livro causa quando respostas são dadas ou podem ser deduzidas pelo acúmulo de informações é indescritível! Inicialmente, é quase como se acompanhássemos três histórias em paralelo: a de Ye Wenjie na Base Costa Vermelha, que gera curiosidade, mas sabemos muito pouco no início; a de Wang Miao e toda a história dos cientistas do mundo que estão cometendo suicídio porque, aparentemente, a vida deles não faz mais sentido; e a do jogo Três Corpos. Cixin Liu apresenta conceitos e premissas habilmente, e então os une perfeitamente.

Em uma grande história de ficção científica e invasão alienígena.

Ou, na verdade, do contato com o alienígena como símbolo.

Gosto muito de Wang Miao, e como ele é um personagem que serve como nosso avatar dentro da trama – é a partir de Wang Miao que exploramos e desvendamos os segredos de “O Problema dos Três Corpos”. Todo o clima de suspense maravilhosamente criado a partir de suas experiências primordiais tornam a leitura ávida por respostas: por que os cientistas estão se matando por todo o mundo? Por que Yang Dong disse que “a física não existe”? Por que Wang Miao está vendo uma contagem regressiva em todas as fotos que tira? Por que a contagem regressiva para quando ele para sua pesquisa com nanomateriais? O que vai acontecer quando a contagem regressiva chegar ao fim? Como pode o universo todo ter “piscado” para Wang Miao?

Quando Wang Miao passa a entrar no Três Corpos, o jogo online, eu confesso que a narrativa deu uma guinada inesperada para mim… a diferença abrupta daquele universo aparentemente fictício com a realidade gera curiosidade, e eu me vi esperando ansiosamente pelo próximo login de Wang Miao no jogo, pela próxima maneira como mais uma civilização de Três Corpos seria aniquilada, pelas próximas teorias que buscassem dar algum significado à alternância aparentemente sem sentido entre Eras Caóticas e Eras Estáveis, e tudo lá dentro me parece uma experiência grandiosa… é impressionante como fiquei vidrado em cada “partida”, em cada possibilidade, em cada mudança no cenário e em cada catástrofe que levava uma civilização após a outra.

E eu acho que o jogo Três Corpos é, provavelmente, um dos melhores conceitos criados por Cixin Liu, porque consegue despertar no leitor uma espécie de fascínio similar ao que foi causado pelas possibilidades da civilização de Trissolaris sobre os humanos que descobriram a seu respeito – confesso que parte de mim ficou triste quando foi anunciado que “o jogo tinha chegado ao fim”, mas é porque Três Corpos já não tinha mais nada a contar em sua realidade virtual… ele cumprira o seu papel de apresentar a civilização trissolariana, sua história, sua missão rumo à Terra… as respostas que ganhamos a respeito do porquê das Eras Caóticas, as Eras Estáveis e as três “estrelas voadoras” no céu geram um dos meus capítulos favoritos no livro.

Faz tanto sentido! A resposta estava no título o tempo todo!

O jogo Três Corpos é, na verdade, uma maneira de recrutar pessoas para a Organização Terra-Trissolaris, e a partir do momento em que Wang Miao “chega ao fim do jogo”, ele se vê envolvido em uma trama elaborada que ele jamais poderia ter imaginado antes, e que cuidadosamente une os elementos devidamente apresentados até então em uma história única: descobrimos o que realmente estava sendo feito na Base Costa Vermelha, por exemplo, e qual foi o papel de Ye Wenjie na traição à humanidade, quando ela praticamente entregou o planeta de bandeja para uma civilização extraterrestre, que agora ruma à Terra a partir de Trissolaris, um planeta em Alpha Centauro, o sistema estelar mais próximo do nosso. E entendemos como Trissolaris acabou com a ciência na Terra.

Um dos pontos mais incríveis do livro é a representação desse contato com a civilização trissolariana e como isso muda os rumos da humanidade mesmo antes de os visitantes extraterrestres chegarem, de fato, ao nosso planeta… e eu amo o fato de “O Problema dos Três Corpos” não ser, no fim das contas, realmente sobre uma invasão alienígena, mas sobre a humanidade e como ela se comporta em uma situação dessa. O nascimento da Organização Terra-Trissolaris, as facções com diferentes opiniões a respeito da vinda dos trissolarianos, dividindo redentistas e adventistas, enquanto os “sobreviventes” começam a se proliferar… a adoração cega, religiosa e preocupante que vê o externo como a única maneira de “salvar” a humanidade…

Também gosto do jogo de ironia proposto por Cixin Liu quando a verdade sobre Trissolaris vêm à tona após a destruição do Juízo Final. Ye Wenjie começou tudo isso por não acreditar mais na humanidade e, assim como ela, tantos outros depositaram sua confiança nessa civilização distante fazendo projeções sobre quão perfeitos e avançados moralmente eles seriam – e então a verdade vem como um balde de água fria quando temos a oportunidade, enfim, de conhecer Trissolaris além da sua representação fictícia no Três Corpos… conhecemos sua organização social, sua tirania, sua apatia, seu desprezo à cultura e à arte, seu descaso com a vida que não é considerada “produtiva”, sua frieza. Em muitos sentidos, semelhantes aos humanos; em outros, piores que a gente.

Eles não são nenhuma esperança.

A reta final de “O Problema dos Três Corpos” funciona para apresentar um pouco mais de Trissolaris (embora ainda nos deixe curiosos a respeito da aparência dos trissolarianos), e eu acho que o mais inteligente de como Cixin Liu faz isso é vê-lo brincar com paralelos a outras passagens do livro, porque o primeiro contato extratrissolariano é um reflexo do contato extraterrestre. Descobrimos coisas desagradáveis a respeito dos trissolarianos, é verdade, mas é impossível não se admirar com toda aquela questão dos prótons sendo abertos em dimensões para se criar o primeiro sófon, que é basicamente o que mudou o destino da Terra para sempre, estagnando a ciência e garantindo a superioridade científica e tecnológica de Trissolaris até a sua chegada

Em aproximadamente 450 anos.

Tão repleto de conceitos, de acontecimentos e de reviravoltas, “O Problema dos Três Corpos” paradoxalmente termina parecendo uma introdução a algo muito maior – o que, de fato, ele é, porque essa história seguirá em “A Floresta Sombria” e, eventualmente, em “O Fim da Morte”, agora que a humanidade sabe sobre a vinda dos trissolarianos, sabe a respeito dos sófons, e sabe que são considerados apenas “insetos” pelos extraterrestres que anseiam por nosso planeta… sermos “insetos”, como Wang Diao e Ding Yi entendem no fim do livro com um empurrãozinho esperto de Shi Qiang (EU AMO O SHI QIANG, SÉRIO!), não significa que estamos ou seremos inevitavelmente derrotados. E é assim que se começa a resistência da Terra, com muito tempo pela frente.

Amo que a história vai atravessar gerações!

As possibilidades são imensas, e sei que Cixin Liu vai ARRASAR.

Nos próximos livros, teremos a oportunidade de explorar outros cenários e épocas através dos pontos de vista de outros personagens, algo que Cixin Liu já faz destemidamente até mesmo em “O Problema dos Três Corpos”. Eu gosto de como o livro tem a audácia de se desprender de lugares e pessoas conforme a narrativa exige, em uma experiência enriquecedora, nos levando da vida de Wang Miao ou de suas partidas em Três Corpos, em um capítulo, para capítulos a partir da perspectiva de Ye Wenjie nos longos anos em que ela esteve na Base Costa Vermelha, por exemplo, ou eventualmente nos transportando até Trissolaris e nos entregando um capítulo fascinante a partir da descoberta e da experiência do Ouvinte trissolariano no Posto de Escuta 1379.

Termino a leitura e fecho o livro pensativo e feliz… o impacto de “O Problema dos Três Corpos” sobre mim é avassalador. Uma daquelas experiências catárticas que se tem poucas vezes na vida, e como um eterno apaixonado por ficção científica, fico feliz pela oportunidade de ter esse livro em mãos e poder vivenciar essa história. Com uma competência indiscutível, o livro usa a ciência a seu favor, remonta aos primórdios do gênero da maneira mais cativante possível e constrói uma história envolvente e cheia de camadas, que nos convida a nos colocar no lugar dos personagens e a ser parte disso tudo. Uma ficção científica poderosa que junta mistério, suspense, ação, filosofia e possibilidades infinitas para o futuro. Ainda há muito a se explorar a partir dessa premissa!

Ansioso pelo retorno!

 

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Comentários

  1. Um baita texto! Fiquei curioso sobre a história. Vou atrás

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    1. Se você gosta de ficção científica, vai amar! Acho que dá tempo de ler pra acompanhar a série :)

      P.S.: Pretendo comentar a série também!

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