Gay de Família (Felipe Fagundes)

“Família é uma palavra vazia se não tem alguém para dar uma raquetada por você”

Facilmente um dos livros mais sensíveis, sinceros e emocionantes que eu já li – e certamente o livro mais engraçado. Felipe Fagundes conduz uma narrativa honesta, competente e bastante relacionável, de uma maneira que eu termino o livro sentindo que eu conheço o Diego há muito tempo e que ele é meu melhor amigo. Eu sei que ele já tem uma Nádia, mas será que ele aceita também um Jefferson? Com astúcia e inteligência, “Gay de Família” é uma obra divertidíssima, do tipo que me fez literalmente parar a leitura para poder controlar minhas gargalhadas (o que foi muito inédito para mim, mesmo!), e eu gosto da maneira como o autor usa de um bom-humor por vezes ácido para tratar, também, de assuntos muito pertinentes à comunidade LGBTQIAPN+.

Vou dizer algo fortíssimo e deixar registrado nesse momento: “Gay de Família” é um dos melhores livros que eu li na vida. A quantidade de sentimentos que o livro despertou em mim me fez pensar, mais de uma vez antes de concluir a leitura, em como esse tem que ser um livro que eu vou ler mais de uma vez na vida… talvez seja um livro que eu precise ler uma vez ao ano, sei lá! Para que eu possa reencontrar o Diego e os Dioguinhos, por quem nos encantamos tão intensamente, para que eu possa voltar a gargalhar despreocupadamente de tantas situações absurdas e hilárias ou da narração perfeita de Diego, ou ainda para que eu possa me emocionar e refletir, que também é algo que o livro propõe. O equilíbrio encontrado por Felipe Fagundes em sua obra é assombroso!

(Autor profundamente talentoso e competente que se diz, né?)

Diego é um homem gay que mora com a melhor amiga em um apartamento bancado pela mãe rica e problemática dela, e que praticamente não tem nenhuma relação com a própria família… como a própria sinopse do livro diz, “ele espera tudo de ruim dos próprios parentes”. E também pudera! Com um sarcasmo que é, na verdade, uma armadura para tentar protegê-lo de todo o sofrimento que a família lhe causou e ainda lhe causa, Diego vai nos revelando, aos poucos, como foi viver com aqueles que parecem os piores pais do mundo – mais um irmão omisso. Ao voltar-se para as memórias que Diego tem dos pais durante a infância e como ele sempre foi tratado mesmo depois de sair de casa, “Gay de Família” ganha seus trechos mais dolorosos de se ler.

E, infelizmente, eles parecem muito reais.

O irmão, Diogo, só “dá sinal de vida” em duas ocasiões: 1) no Natal; e 2) quando precisa de alguma coisa. Quando Diogo começa a telefonar insistentemente para Diego enquanto ele está se preparando para uma viagem a Arraial do Cabo com os amigos e ainda falta alguns meses para o Natal, Diego sabe que ele vai pedir alguma coisa… e, por algum motivo, ele acaba atendendo ao telefone, e o porteiro maquiavélico que detesta Diego, mas mantém um sorriso falso no rosto o tempo todo (quer dizer, pelo menos até a Suzie lidar com isso), o deixa subir até o apartamento. Então, Diego tem que ouvir a proposta absurda do irmão: ele quer que ele fique cuidando dos sobrinhos naquele fim de semana… enquanto ele e a esposa Kelly/Keila/Ke$ha vão a um retiro.

Mas não um retiro religioso… um retiro para transar.

Não importa.

Parece um absurdo tão grande que Diego até chega a rir do irmão: depois de ele ter sido literalmente cortado da vida dos sobrinhos (a mais velha tem 9 anos, pelo amor de Deus!) por ser gay, Diogo vem pedir que ele cuide dos pirralhinhos? Toda essa introdução do livro é MARAVILHOSA, e eu simplesmente adoro como Diego os chama de Diogo 1, Diogo 2 e Diogo 3 porque ele não sabe o nome deles – e eu nem diria que a culpa é dele, foi o irmão que não deixou que ele fizesse parte das vidas de Ester, Miguel e Gabriel até então, não é? Mas alguma coisa faz com que Diego aceite o “trabalho”, e talvez seja o fato de que o irmão tem bastante dinheiro, e ele via receber por isso, além de ficar em posse de um cartão de crédito mágico, e ele pode tirar fotos com as crianças e postar no Insta.

No fundo, não é por nada disso. No fundo, Diego quer conhecer os sobrinhos.

A interação de Diego com os três Dioguinhos é, naturalmente, A ALMA DO LIVRO! As crianças são encantadoras. Quer dizer, complicadas como crianças normalmente são, mas encantadoras. Diogo 1, ou Ester, age como se fosse invisível, quase não tem voz ou vontade própria, e deixa que os irmãos façam o que quiser com ela; Diogo 2, ou Miguel, é o mais atentado de todos, não para quieto um segundo que seja, e adora princesas e sereias; Diogo 3, ou Gabriel, só usa preto e tem uma fascinação por qualquer coisa que é sinistra, numa vibe meio “A Família Addams”. Ah, e Diego ainda tem que cuidar de mais dois personagens icônicos: Suzie, a gata mais feia que Diego já viu (e que me rendeu ótimas risadas), e João Augusto, o misterioso amigo imaginário de Gabriel…

Que acaba não sendo apenas “uma criança blasé da Zona Sul do Rio de Janeiro”.

É claro. Ele é amigo imaginário DO GABRIEL!

Todas as situações pelas quais Diego passa com os sobrinhos são incríveis! Daquele tipo gostoso de se acompanhar, e eu passei quase o livro todo ou gargalhando das situações mais bizarras que me arrancaram verdadeiras gargalhadas ou com um sorriso sincero no rosto. Gosto muito de como tudo é exagerado e, ainda assim, sabemos que é a realidade de cuidar de três crianças, e de como aquele fim de semana é o suficiente para que Diego comece a ver os sobrinhos e, quem sabe, passe a conhecê-los até melhor do que o Diogo – ou pelo menos sem ignorar coisas que Diogo deliberadamente ignora. Acredito que aquelas crianças precisam de Diego em sua vida, no fim das contas! E é muito lindo ver como Diego vai “aprendendo” os nomes das crianças conforme passa a se importar mais com elas.

Eu adoro a naturalidade com que Gabriel solta uns comentários, às vezes dos mais insanos possíveis, e a verdade é que tanto Gabriel quanto Miguel e Ester parecem tão reais – assim como Diego. Se o Diego aceitar um Jefferson mesmo já tendo uma Nádia, eu quero um dia com os Dioguinhos! Para citar alguns dos meus momentos favoritos do livro, eu amo os Dioguinhos empolgados com as várias maneiras diferentes que Diego sabe fazer pão com ovo, amo o Diego se divertindo na piscina com os sobrinhos, brincando de tubarão caçador de sereia ou qualquer coisa assim, e eu amo toda a sequência do supermercado… quer dizer, tem momentos que são potencialmente preocupantes e me deixaram apreensivos, mas o que dizer dos Dioguinhos reagindo ao chocolate importado?

Aquilo é PER-FEI-TO!

Também é impossível não mencionar toda a sequência do shopping, que traz vários dos momentos mais hilários e mais importantes do livro. O parágrafo do Diego falando sobre Ester depois de descer do Uber, sobre como “ele deveria mandar os irmãos de volta para casa e passar um dia perfeito com a Ester no shopping, que ela é sua favorita, a sobrinha que nunca quer que saia do seu lado”, seguido do comentário dos meninos de que “ela ficou no carro” (!) ME FEZ RIR POR ALGUNS BONS MINUTOS! De verdade! Também me diverti demais (MESMO!) com o Diego usando os sobrinhos para realizar um sonho de infância, que é andar naqueles bichinhos mecânicos pelos corredores, e como ele conseguiu convencer o Gabriel dizendo que “eram animais empalhados”.

Curiosamente, é emocionante demais o Diego dizendo que “é a criança fresca mais feliz daquele shopping”.

E a sequência do shopping também traz uma das cenas mais revoltantes e, no fim das contas, emocionantes de todo o livro, quando Diego leva os Dioguinhos para uma loja de brinquedos e deixa que eles escolham o que quiser, e um valentão encrenca com o Miguel por causa de uma raquete, e diz coisas horríveis que são o retrato da homofobia e da sociedade conservadora na qual vivemos, tudo porque Miguel está usando uma tiara e asas de fadas… que Diego deixou que ele usasse porque isso o faz feliz, e ele não precisa ser podado. O menino é nojento, Diego sai em defesa do sobrinho, o que é muito bonito, mas o que surpreende mesmo é a Ester tendo uma atitude talvez pela primeira vez no livro, pegando a raquete e dando uma raquetada no garoto.

É aquela coisa de “sou contra a violência, mas depende”.

Como não amar a Ester?

Também é impossível negar que toda a sequência do shopping traz memórias lindíssimas para todo mundo… e embora o Diego tenha dito, lá no começo do livro, que esperava que os sobrinhos fossem bonitos para gerar engajamento no Instagram, as fotos, bumerangues e vídeos que ele postou mostram, na verdade, o quanto eles se divertiram mesmo. É um momento TÃO LINDO ver o Diego falando sobre as postagens, porque relembramos a maneira como o Miguel animadamente fez com que o tio subisse no brinquedo de dança porque “eles precisavam dele”, e como, naquele momento, todos simplesmente se divertiram… sem se importar com qualquer pessoa de fora. É um momento tão puro, tão belo, tão marcante – Miguel certamente se lembrará daquilo para sempre.

Diogo não gosta do que vê nas redes sociais do irmão, no entanto… e isso rende uma das cenas mais marcantes do livro, quando os dois discutem pelo telefone porque Diego o acusa de não ver os filhos. E é verdade. Não quer dizer que Diogo seja um péssimo pai, mas ele tem falhas, especialmente na maneira como deixa que os próprios pais, que já causaram tanto sofrimento em Diego, façam o mesmo com os seus filhos. E é isso o que mais revolta o Diego: ele já se importa com os Dioguinhos o suficiente para ficar furioso por Diogo não fazer nada contra a opressão dos pais. Os pais que querem obrigar Gabriel a usar outra cor, que proíbem Ester de comer pão porque dizem que “ela está feia” ou que proíbem Miguel de gostar de princesas porque “é coisa de menina”.

Diego vê isso tudo e entende isso tudo – e é mais ou menos aí que ele percebe que ele precisa fazer parte da vida dessas crianças. Ele não pode deixar que os pais estraguem a vida dos netos como estragaram a sua. No meio de tantas risadas e de tantas situações que são uma delícia de se acompanhar, “Gay de Família” traz momentos sombrios que são como um soco no estômago do leitor que ou já passou por algo parecido na vida ou provavelmente conhece alguém que já passou… e eu gosto muito de como Felipe Fagundes não fantasia essa realidade da comunidade LGBTQIAPN+, tampouco “defende” a família de Diego “por ser família”, porque às vezes é necessário, sim, se afastar de pessoas tóxicas como os pais de Diego, que lhe fizeram e fazem tão mal…

Diego tem uma outra família. Escolhida por ele.

E que também o escolheu.

E, inclusive, essa família de Diego É UM BARATO! Quer dizer, passamos a maior parte do tempo com o Diego e os Dioguinhos, enquanto Nádia e os demais estão em Arraial do Cabo, se divertindo à beça (!), mas eles são incríveis. E eu adoro como Diego tem um daqueles grupos de amigos que se xingam e se provocam, mas se amam mais do que tudo no mundo! A “intervenção” feita à distância nos entrega uma das cenas mais fofas de “Gay de Família”, por exemplo, porque é a primeira vez que Diego se abre com os amigos sobre a sua família e como ele se sente, e ele é acolhido pelos amigos, de uma maneira que o faz entender que ele é amado… o que é não quer dizer que eles não estejam ainda um pouco bravos porque ele deu o cano neles.

Mas tudo bem!

Diego também conhece, durante aquele fim de semana, Ulises – o novo vizinho que é um verdadeiro deus grego. Felipe Fagundes faz um trabalho tão magnífico nos fazendo imaginar um Ulises com a aparência perfeita que é de tirar o fôlego… e é excitante quando as coisas esquentam entre Diego e Ulises. Ou pelo menos parece ser, até que Diego percebe que eles não são compatíveis, nem mesmo para uma noite de prazer. Afinal de contas, Ulises parece odiar crianças… não, não “parece”: ele literalmente diz que odeia crianças. E parece forte demais para Diego, especialmente depois de ter se afeiçoado aos seus sobrinhos naquele fim de semana: não é normal odiar crianças desse jeito, né? Ulises tem algumas falas realmente preocupantes nesse sentido.

E, assim, Diego perde totalmente o interesse.

Parece até que Ulises votou em fascista, sabe?

O clímax do livro acontece quando Diego retorna para o apartamento depois de “ter dado uma escapada”. Ele tinha colocado os sobrinhos para dormir antes de sair para se encontrar com Ulises, e quando ele retorna para casa frustrado e quer ver os sobrinhos dormindo, ele encontra a cama vazia – e é tomado por um desespero tão profundo que aquele supera o seu “pior dia da vida” até então (e foi doloroso demais ler a recordação de Diego sobre qual era “o pior dia da sua vida” antes daquele). Diego precisa encontrar os sobrinhos e garantir que esteja tudo bem com eles, enquanto uma verdadeira tempestade está caindo do lado de fora, e ele conta com a ajuda de Suzie e enfrenta a possibilidade de ter que pedir uma ajuda a Silvério… que acaba tendo o que merece.

A cena toda do Diego reencontrando os sobrinhos na piscina, bancando o 007 gay e caindo pateticamente (e sendo carregado pelo João Augusto, quem sabe?) é uma das mais emocionantes de todo o livro! É TÃO CHEIA DE SENTIMENTO! Tudo aqui funciona à perfeição: a maneira como Diego se preocupa com eles e como está aliviado ao vê-los bem; a maneira como Diego descobre que as crianças saíram para procurar por ele, porque acordaram, não o viram em casa e temeram que ele tivesse “sumido para sempre”, como disse que faria se eles não parassem de fazer bagunça; a maneira como todos se abraçam emocionados, por diferentes motivos; a forma como Gabriel fala das anteninhas e dos tentáculos de João Augusto; o comentário de Miguel.

SÉRIO, EU AMO TODOS ELES!

Para o próprio Diego pode parecer clichê dizer que “ele não é mais a mesma pessoa depois daquele fim de semana”, mas a verdade é: como ele poderia ser? Conhecer os Dioguinhos e passar a se importar com eles mudou a sua vida para sempre, e ele descobriu que, além da família que ele escolheu para ter ao seu lado, talvez ele também ainda tenha uma família onde ele achou que não lhe restasse nada… pelo menos Diogo dá o primeiro passo rumo a abrir as portas de sua casa para o irmão, e quando o Gabriel, sem entender que a porta a qual eles se referiam não era literal, diz que “eles vão abrir a porta para o tio”, eu achei extremamente simbólico… e, na verdade, foi exatamente isso o que eles fizeram, não? Agora, eles são parte um da vida do outro.

Eu amei. Amei “Gay de Família” mais do que eu jamais poderia colocar em palavras, embora eu tenha tentado nesse texto não tão breve. Enquanto lia e constantemente parava para gargalhar, eu pensei em registrar trechos e trazer para cá, mas percebi que essa é uma experiência que precisa ser vivida. É necessário conhecer o Diego, conhecer os Dioguinhos e estar com eles em cada momento para poder gargalhar dos diálogos mais perfeitos e das situações mais hilárias possíveis. É necessário estar com eles para amá-los, para se importar com eles, para torcer por eles, para querer abraçar o Diego e dizer que “está tudo bem”, e amar a diferença que ele está começando a fazer na vida dos Dioguinhos. Um livro para se divertir, para se emocionar e para se refletir.

Um verdadeiro marco!

 

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