Pobres Criaturas (Poor Things, 2023)
“It is the
goal of all to improve, advance, progress, grow”
Uma obra
inusitada, transgressora e libertadora – uma jornada com toques de surrealismo,
de absurdo, de filosofia… UMA EXPERIÊNCIA REVIGORANTE! Com direção de Yorgos
Lanthimos e roteiro de Tony McNamara, baseado em um romance escocês de 1992 de
Alasdair Gray, “Pobres Criaturas”
teve sua primeira exibição no 80º Festival Internacional de Cinema de Veneza, e
foi uma verdadeira aclamação de crítica e público, o que rendeu uma série de
prêmios para o filme, dentre eles um Oscar de Melhor Atriz para Emma Stone, que
merece todo o reconhecimento que a sua atuação como Bella Baxter puder trazer:
ela estava ESPETACULAR do início ao fim, representando com destreza todas as
facetas e fases da personagem, que se “transforma” durante o filme.
Bella Baxter
é uma “criação” do Dr. Godwin Baxter (sua aparência lembrando a do monstro de
Frankenstein e o seu apelido sendo “God”), um cientista curioso que encontrou o
corpo de Victoria Blessington poucos minutos depois de a mulher, grávida, se
jogar do alto de uma ponte. Apaixonado por experiências impensáveis, God retira
o cérebro da criança não-nascida e o transplanta para o corpo da mulher adulta
falecida, e então reanima o corpo com eletricidade, em uma sequência que propositalmente nos remete a “Frankenstein”, com o qual a obra
compartilha algumas similaridades curiosas. E então essa “criatura”, que tem o
cérebro e o corpo dessincronizados, evolui depressa e ávida por mais, tentando descobrir quem ela é no
mundo.
Visualmente,
o filme me FASCINA. Pensei um pouco em obras como “Edward Mãos-de-Tesoura” e “Hoje
é dia de Maria”, duas obras que eu adoro, enquanto assistia ao filme. Para
dar vida a essa história quase inesperada,
o filme se vale de recursos visuais e técnicas quase teatrais que resultam em algo único, belo e marcante, que condiz
perfeitamente com o conto de Bella Baxter… características surrealistas se unem
a elementos diacrônicos, cenários coloridos e figurinos extravagantes, e há um
quê quase paradoxal que mescla uma melancolia nata a momentos de comédia
absurda, em um filme que nunca falha em despertar
emoções. A paradoxalidade se estende, ainda, ao fato de o filme levantar
questões, gerar desconforto e, ao mesmo tempo, ser ironicamente aconchegante.
As primeiras
cenas de Bella, ainda em Londres, na casa de God, expressam o seu avanço
acelerado, conforme o cérebro corre para “acompanhar” o corpo, e rapidamente
ela está andando, formando frases, expressando-se de maneira cada vez mais
complexa, e presenciamos descobertas como a da sexualidade quando ela atinge o
equivalente à puberdade (a cena em que ela conta para a empregada da casa é uma
das minhas favoritas no filme todo!), e quem sabe até do amor, quando ela se
interessa por Max McCandles, mas a verdade é que Bella Baxter é uma mente
inquieta… uma mente que quer mais, que quer ver além daquele mundinho fechado
dentro da casa de God, e é por isso que ela aceita “fugir escondida” com Duncan
Wedderburn.
E esse é o
início da jornada de autodescoberta de Bella Baxter, uma jornada que a leva
para conhecer o mundo, e que aos
poucos a transforma – e eu acho que esse é o grande poder de “Pobres Criaturas”. Bella é uma alma
muito livre, sem amarras tradicionais, e que tampouco permite que outras
pessoas a aprisionem… não foi assim com God, não será assim com Duncan, e isso
faz com que nós amemos Bella mais a
cada segundo (e Emma Stone entrega à personagem um carisma fascinante!).
Inquieta (e apaixonada por “saltos furiosos”), Bella Baxter não consegue ficar
fechada em um quarto de hotel em Lisboa, por exemplo, quando ela tem uma cidade nova inteira para explorar lá
fora, e a sua força está no fato de que ela não foi moldada para ser algo que ela não é.
Ela é Bella
Baxter!
A viagem de
Bella Baxter a faz ver coisas, conhecer pessoas, estudar, aprender… amo o seu
diálogo com Martha von Kurtzroc no navio rumo a Atenas no qual Duncan a coloca
em uma tentativa desesperada de “prendê-la” (algo que ele nunca vai conseguir
fazer), e como o que ela vê em Alexandria a destroça, e aquela é a primeira
lição de desigualdade social que ela recebe da vida, que ela tenta “corrigir”
de maneira ingênua, mas com boa intenção, pegando todo o dinheiro que Duncan
ganhara no cassino do navio “para entregar aos pobres”, e essa é uma trama aprofundada em Paris, quando ela aprende
sobre o socialismo com aquela que se tornará a sua melhor amiga. E eu AMO ver Bella fascinada por livros ao seu
redor, amadurecendo cada vez mais.
Bella Baxter
é essa “criatura” muito além do seu tempo. Mais livre do que qualquer outro
personagem de “Pobres Criaturas”, sua
estadia em Paris, trabalhando como prostituta, lhe rende alguns dos seus
maiores aprendizados, e é onde a vemos andar de maneira mais ereta, por
exemplo, com uma atitude inteligente e de quem sabe do que está falando quando
Duncan volta a procurá-la e ela fala que o que quer que eles tenham tido já
acabou, por exemplo… ali, talvez ela conquiste de uma vez por todas a sua
independência, embora ela nunca tenha se permitido aprisionar, de todo modo. E
ela só retorna a Londres, eventualmente, para visitar o pai que está à beira da
morte – e para saber se a marca que traz na barriga quer dizer que ela teve um bebê.
E, então,
ela conhece toda a sua história.
A conversa
de Bella com God é outro momento espetacular
do filme, quando ela percebe a atrocidade cometida e chama God e Max de
monstros, mas não consegue ficar realmente brava com eles porque também adora estar viva. O seu retorno
para casa rende alguns momentos sentimentais muito bonitos, como a conversa
sincera dela com Max a respeito de um possível casamento (o Max é uma boa
pessoa, na verdade, e eu adoro a maneira como ele entende e respeita Bella,
incapaz de julgá-la por qualquer coisa), ou a despedida de God, quando ela se
deita ao seu lado na cama como fazia antigamente… e um pouco do passado de Victoria
Blessington, quando o seu marido aparece querendo levá-la de volta para casa, e
Bella conhece outra faceta aterradora
da humanidade…
Alfie
Blessington sim é um monstro.
Gosto muito
de toda a conclusão do filme, que tem novos toques de bizarrice, flerta com o
horror e abusa da ironia. Alfie faz com Bella a pior coisa que ele poderia
fazer: ele tenta aprisioná-la e ditar a
maneira como ela deve se comportar. Bella Baxter não aceitou que ninguém
fizesse isso nem mesmo quando ela era “jovem”, ela jamais permitirá isso agora,
com tudo o que ela viveu, viu e aprendeu. Bella é uma mulher madura,
independente e livre – com um quê sádico e uma inclinação aos experimentos
impensáveis que parecem ser parte da Família Baxter há mais de uma geração… é
catártico ver Bella tão poderosa, realizada e tranquila na sequência final do
filme, tomando chá do lado de fora de casa. Tem conceito, tem deboche, tem
transgressão…
Definitivamente,
UMA GRANDE OBRA! Que filme espetacular!
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