Todos Nós Desconhecidos (All of Us Strangers, 2023)

“Don’t let this get tangled up again”

Um filme sobre perda, luto, relações familiares, oportunidades e a vivência LGBTQIA+ na nossa sociedade. Intenso, emotivo e sincero, “Todos Nós Desconhecidos” é um daqueles filmes que nos mudam para sempre… daqueles que, ao terminar, continuamos olhando para a tela, e com ele na mente por dias. Escrito e dirigido por Andrew Haigh, vagamente inspirado pelo livro “Strangers”, de Taichi Yamada e publicado em 1987, o filme foi protagonizado por Andrew Scott e Paul Mescal e foi apresentado no 50º Festival de Cinema de Telluride. Como um filme britânico independente, “Todos Nós Desconhecidos” foi apresentado em vários festivais, ganhou 18 prêmios de cinema e conta, atualmente, com uma aprovação de 96% da crítica especializada no site Rotten Tomatoes.

“Todos Nós Desconhecidos” é a história de Adam, um escritor solitário que parece querer se isolar do mundo… atualmente, ele vive sozinho em um prédio recém-construído que conta com apenas um vizinho, e ele visita constantemente a casa na qual viveu com os pais na infância – antes da morte deles em um trágico acidente de carro quando ele tinha quase 12 anos. De alguma maneira, no entanto, ele segue convivendo com os pais, os reencontrando a cada visita que faz à sua antiga casa, o que talvez o prenda no passado e o impeça de seguir em frente, de se abrir para a vida e para o que pode acontecer com ele agora, no presente. O filme é uma jornada de dor, revelação, aceitação e despedida, conforme Adam decide abraçar o novo à sua frente.

Com direito um plot twist espetacular. E triste.

Entre uma visita e outra aos pais, Adam conhece e se envolve com seu único vizinho, Harry. O primeiro encontro deles, uma cena importantíssima que é eventualmente retomada em diálogo, traz o Harry bêbado à porta de Adam, pedindo que ele o deixe entrar, mas Adam não deixa. Eventualmente, no entanto, a relação entre eles se concretiza em uma sequência poderosa que é íntima e verdadeira. É impressionante como tudo funciona naquela primeira cena em que Adam deixa Harry entrar em seu apartamento: a conversa deles sobre ser gay/queer, a tensão e o tesão que os aproxima, a ousadia de uma primeira vez excitante, construída brilhantemente com atuações entregues e uma direção de primeira que sabe perfeitamente usar os ângulos para entregar o sentimento e o prazer.

A relação entre Adam e Harry é perfeitamente imperfeita. Notamos, desde sempre, o quanto um precisa do outro… o quanto eles são pessoas “quebradas” que podem, talvez, se ajudar mutuamente. E é essa relação quase inesperada de Adam com Harry que o impulsiona a contar para a mãe, pela primeira vez, sobre ele ser gay… existe tanta coisa que me atingiu naquela sequência: o fato de os pais terem morrido sem que ele pudesse ter contado para eles, antes, sobre sua sexualidade, e a maneira como a premissa do filme permite explorar isso como um fantasma que talvez tenha perseguido o Adam durante toda a sua vida, até a fase adulta, porque, infelizmente, vivemos nossas vidas inteiras conscientes do fato de que seremos julgados.

E não saber como aquelas pessoas que amamos reagiriam é doloroso.

A discrepância entre as reações da mãe de Adam e do pai, apresentadas em duas visitas separadas, geram uma riqueza extra para o roteiro de “Todos Nós Desconhecidos”. São duas cenas intensas e marcantes. Primeiro, a mãe reage com choque, fazendo perguntas que tantos de nós já ouvimos, sobre se ele não quer se casar e ter filhos, se ele não se sente solitário, se a sua vida não está correndo perigo… e acho que, quando Adam explica para a mãe que “as coisas mudaram”, em parte talvez ele também esteja tentando convencer-se a si mesmo. De fato, muita coisa mudou desde a década de 1980, quando os pais de Adam morreram; isso infelizmente não quer dizer, no entanto, que estejamos atualmente vivendo nenhuma espécie de “paraíso queer”.

Ainda estamos muito longe disso.

Tanto a conversa com a mãe quanto a conversa com o pai são dolorosas, mas cada uma à sua maneira… a mãe claramente precisa de tempo para processar toda a informação. O pai, a quem Adam não tem a oportunidade de contar diretamente, porque a mãe já contara desde a última visita de Adam, é uma história diferente. Muito mais melancólica, a reação do pai parece mais aberta, mas ao mesmo tempo em que ele expressa sua aceitação, ele também expressa culpa, porque sente que não esteve para o Adam quando ele precisou – ele o ouvia chorar no quarto ao voltar da escola às vezes, por exemplo, mas nunca abriu a porta para conversar com ele, para dar um abraço. É tão FORTE o pedido de desculpas, o Adam dizendo que “já foi” e o abraço sincero e emocionado dos dois.

Chorei nessa cena, naquele abraço.

O filme tem uma sequência impressionante no momento em que, pela primeira vez, Adam e Harry resolvem sair juntos para o mundo – e então eles acabam em uma balada, com direito a drogas. Há algo de psicodélico, resultado da droga, que é perfeitamente transmitido à audiência através da edição, das cores e da trilha sonora… é muito curioso como, de certa maneira, os mundos de Adam colidem, e como nós estamos com ele nessa viagem, que é uma mistura inusitada de sensações que paradoxalmente parecem sufocantes e libertadoras. E as duas “realidades” de Adam de fato se encontram quando ele resolve levar Harry até a sua casa de infância para que ele também possa ver, em uma cena que me parece desesperadora e, ao mesmo tempo, surpreendente.

Porque Harry de fato os vê. E sente medo.

Adam não entende por que os pais não os deixaram entrar, e eles eventualmente tomam uma decisão: ele não deve mais visitá-los. Adam não sente que foi o suficiente, mas a verdade é que jamais será, e todos sabem disso… e os pais querem que ele siga em frente, que ele viva sua própria vida, que ele dê uma chance para Harry. Então, eles se despedem. “Todos Nós Desconhecidos” nos entrega cenas emocionantes como a da árvore de Natal, que é quase um pedido de desculpas da mãe, a do Adam indo dormir na cama dos pais com medo da “morte” deles e, é claro, a despedida oficial no restaurante ao qual ele costumava ir com os pais na infância… aquela cena é tão honesta, tão dolorosa e Andrew Scott entrega uma atuação tão pungente!

É de arrepiar. E de nos fazer chorar.

“I know I was never good at saying it… I couldn’t get the worlds out. But I do love you, very much. Somehow even more now that I know you”

Depois, Adam retorna para casa, pensando em procurar Harry, “dar uma chance” e viver o que eles estão começando a construir juntos… e é então que o filme tem uma reviravolta daquelas que nos destroem completamente (mas a surpresa acaba deixando o filme ainda mais impactante, sem dúvida): Adam desce do elevador no andar de Harry, entra no seu apartamento, que está com a porta aberta, a televisão ligada em estática e bebida e comida espalhadas por todo lado – e, no quarto, já inchado e cheirando, o corpo de Harry. E, a julgar pelo estado da mão, que é tudo o que vemos, Harry está morto há algum tempo… na verdade, tudo indica que Harry morreu na noite em que ele e Adam se conheceram, não sei se antes ou depois de ele pedir, na porta de Adam, para entrar…

Agora, Adam precisa enfrentar uma nova despedida, e há tanto carinho, cuidado e dor na cena final de Adam com o espírito de Harry, quando ele o convida para o seu apartamento e o abraça, para estar com ele. O diálogo é praticamente perfeito: a maneira como Harry diz que “sentiu muito medo naquela noite”, como Adam pede desculpas por não o ter deixado entrar, ou como Harry dolorosamente pergunta onde estão os seus amigos, seus irmãos, seus pais… por que ninguém o encontrou ali? Se não fosse por Adam, por quanto mais tempo o corpo de Harry ficaria ali, abandonado por uma família que o deixou à margem? Sozinho. Toda a sequência final é um último soco no estômago que “Todos Nós Desconhecidos” nos dá, mas há também muita beleza no Adam cuidando de Harry até que ele esteja pronto para ir

Que filme poderoso. Que obra impressionante.

Tocou em feridas, machucou… e marcou. Simplesmente EXCELENTE.

 

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