Quinze Dias (Vitor Martins)

“Meu casal favorito é a gente”

UM DAQUELES LIVROS QUE FALAM DIRETAMENTE AO CORAÇÃO. Publicado em 2017, “Quinze Dias” é o livro de estreia de Vitor Martins, responsável por outras histórias como “Um Milhão de Finais Felizes” e “Se a Casa 8 Falasse”, além de traduções para o português como “Os Dois Morrem no Final” e “O Azul Daqui é Mais Azul”, e eu estou terrivelmente apaixonado. Tanto que me “separar” de Felipe e de Caio me entristece… “Quinze Dias” é um livro sensível, honesto e emocionante que nos arrebata e que nos faz rir e chorar, e me fez experimentar aquela sensação paradoxal de não querer parar de ler, mas tampouco querer terminar o livro. Eu me senti tão próximo desses personagens, dessas histórias e desses sentimentos que eu queria seguir com eles…

Por mais muitos outros 15 dias.

Vitor Martins tem uma escrita fascinante – e envolvente. A sua capacidade inegável de criar personagens tão reais nos deixa com a sensação de que realmente conhecemos aquelas pessoas, que estivemos com eles por muito mais do que os 15 dias de umas férias de julho inesperadas e surpreendentes. Nos apaixonamos por Caio porque é impossível não fazê-lo se o olhamos da perspectiva de Felipe; e ecoamos as palavras de Caio sobre como “o Felipe é incrível” porque tampouco podemos deixar de perceber isso ao conhecê-lo, mesmo quando ele mesmo não percebe; e, consequentemente, amamos ainda mais o Caio por ajudar Felipe a ver isso nele mesmo. Durante o livro, experimentamos angústias, pequenos prazeres, expectativa, orgulho, felicidade…

Uma leitura marcante e deliciosa.

Felipe é um adolescente de 17 anos no último ano da escola – que é um inferno para ele. Sem amigos e atormentado continuamente por colegas de classe babacas por ele ser gordo, ele mal pode esperar pelas férias de julho e pela possibilidade de ficar trancado em casa, sem fazer nada além de assistir coisas na TV com a mãe e dormir, mas os seus planos são “frustrados” quando a mãe anuncia, com nada mais que míseros minutos de antecedência, que o vizinho do 57 vai passar uns dias na casa deles enquanto os pais estão viajando… justamente Caio, o garoto mais lindo de toda a face da Terra para Felipe, por quem ele é apaixonado desde que eles brincaram de sereia na piscina do condomínio e com quem ele não conversa há anos, desde que passou a ter vergonha demais para entrar na piscina…

O que pode dar errado?

“Quinze Dias” é simplesmente maravilhoso. Acompanha os 15 dias que Caio passa na casa de Felipe porque “a mãe é doida” e não deixou que ele ficasse sozinho em casa enquanto ela e o pai saíam em uma viagem ao Chile para celebrar o aniversário de casamento… e ver pinguins. E o que parece um tormento inicialmente, porque Felipe quer ser legal e se aproximar de Caio, mas não consegue (o primeiro dia desastroso, com o Felipe chegando no quarto enrolado em uma toalha, encontrando o Caio lá e, assustado, o mandando embora aos berros), e é muito bonito presenciar como essa relação evolui, como cada detalhe torna a aproximação mais possível, como o Felipe com quem estamos no fim do livro é um Felipe muito diferente daquele do início…

Gosto muito de como o livro é uma espécie de quebra de expectativas, e de como tanto o Felipe quanto o Caio entendem, na convivência, que todos têm seus problemas. Felipe achou que a vida de Caio seria “mais fácil”, mas ele descobre que ser magro e bonito não acaba magicamente com todos os seus problemas, porque ele ainda tem que lidar com a homofobia e com o fato de que a mãe não parece aceitar que ele é gay; Caio, por sua vez, também entende que ter a mãe perfeita que o Felipe tem, que o apoia e o aceita (!), tampouco resolve magicamente todos os problemas de Felipe, porque ele tem outras coisas com que lidar, como a gordofobia. Ambos com problemas e inseguranças sobre as quais eles gradualmente se sentem mais à vontade para falar.

O início aparentemente desastroso vai lentamente cedendo espaço às primeiras interações de Caio e Felipe, e eu sou um grande apaixonado pela maneira como essa relação é construída… como são pequenos gestos que acabam significando muito, como quando o Felipe deixa sua cópia de “As Duas Torres” para o Caio ler, porque aparentemente ele está lendo e relendo o final de “A Sociedade do Anel” várias vezes, e conversar com Felipe não parece uma opção depois do grito no primeiro dia e tudo o mais; ou como o Caio, depois de ter ido sozinho ao shopping com a mãe de Felipe porque ela não conseguiu acordar o próprio filho, escolhe para o Felipe uma camisa diferente das que ele está habituado a usar e diz que “acha que vermelho é a sua cor”.

Talvez o primeiro grande momento em que Felipe começa a mudar a forma como olha para si mesmo venha no dia em que ele vai com a mãe e com o Caio para a ONG na qual a mãe dá aulas de arte toda segunda-feira, e ele defende uma criança de uns garotos idiotas no banheiro, e o garoto passa o resto do dia grudado nele, fazendo com que ele se sinta especial… e o presenteia com um desenho no qual Felipe é o Batman no fim do dia, e aquele desenho significa tanto! Porque alguém o enxerga como um super-herói. E depois de um dia cansativo e significativo, Felipe e Caio dividem o quarto e Caio se abre pela primeira vez, em uma cena profundamente emocionante na qual ele fala sobre ser gay – não é uma novidade para Felipe, mas é bom ouvir Caio dizer isso.

Diferente de Felipe, que tem uma mãe maravilhosa que o apoia infinitamente, Caio tem uma relação difícil com a mãe. Ter feito ele ficar na casa do vizinho para não ficar sozinho em casa, mesmo já tendo 17 anos, é uma prova disso. As ligações e mensagens constantes também. É angustiante perceber a superproteção de Sandra sobre Caio, e ouvir o Caio falando sobre como ele sempre foi repreendido para “não mexer tanto as mãos enquanto fala” e esse tipo de coisa. Como ele foi podado, como ele foi ensinado a esconder quem ele é… como a mãe “não gosta” de sua melhor (e única) amiga porque ela é lésbica. Em determinado momento, Felipe encontra Caio chorando, e o fato de Caio permitir que ele veja esse lado vulnerável dele expressa a intimidade que estão construindo…

As conversas até tarde da noite são mágicas. Enquanto lia o livro, experimentei uma sensação curiosa de lamentar a aproximação do fim do dia, porque eu sabia que seria um dia a menos até o fim do livro, mas eu também estava ansioso para ver como seria aquela noite, sobre o que Felipe e Caio conversariam… e Vitor Martins nos entrega diálogos lindíssimos que variam em tom e temática. Temos momentos de vulnerabilidade nos quais ambos confessam coisas; temos conversas “inventadas” sobre o retorno de Gandalf, por exemplo, só porque o Caio quer conversar com o Felipe antes de dormir; e temos brincadeiras hilárias como aquele dia que Felipe se diz “especialista em bundas” ou quando ele “apresenta” o seu próprio game show sobre conhecimentos gays.

Toda pecinha constrói uma obra fascinante.

Gosto, também, de ler a sessão de terapia de Felipe com Olivia, e como ela lhe dá um desafio que ele não sabe se conseguirá cumprir: conversar com o Caio antes de dormir não tem sido tão difícil, porque está seguro e ele se sente mais seguro, mas puxar qualquer assunto durante o dia, quando “ele pode ser visto”, o assusta mais do que qualquer coisa… amei o fato inesperado de Felipe ter sido 100% sincero com Caio sobre isso, ao pendurar uma coberta na janela do quarto para ter coragem de dizer a Caio que “ele é gordo” e como isso o atormenta, porque ele não se sente bem sendo visto por Caio, e Caio o escuta sem o julgar. Caio é um querido, e Felipe tem uma sorte tremenda de ter encontrado uma pessoa tão especial com quem dividir o quarto por 15 dias.

Felipe também tem sorte pela mãe maravilhosa que tem… Dona Rita (será que ela ficaria brava de saber que eu a estou chamando assim?) é ESPECIAL. Amorosa, compreensiva, moderna, ela é a mãe com quem toda criança LGBTQIA+ sempre sonhou. Felizmente, eu tive a sorte de ter uma mãe como a Dona Rita na minha vida, mas eu sei que nem todos têm essa mesma sorte… eu sei que muita gente está presa a Sandras e piores… porque eu acho que Sandra vai aceitar e amar o Caio eventualmente. Rita é pouco discreta, é verdade, mas eu acho que isso só a torna ainda mais fascinante, com as suas piscadinhas, dicas e conselhos. Sua falta de noção, às vezes, é hipnotizante! E foi ela quem criou a fantástica “quarta musical”, não foi? Quer dizer, tem como não amá-la?

Inclusive, o capítulo que eles veem “Hairspray” é lindo.

A segunda “quarta musical” então, nem se fala… mas chego lá mais tarde.

Se Felipe tem Dona Rita como sua maior companheira, Caio tem Beca – sua melhor amiga, e a única amiga que ele tinha na escola, mas que se formou no ano anterior, porque é um ano mais velha, e está na faculdade agora… e quando Caio quer levar Felipe ao shopping para conhecer a Beca, “porque a Beca quer conhecer o Felipe”, ele aceita, porque não consegue dizer “não” para esse garoto, mas não poderia estar mais nervoso. Até conhecer, de fato, a Beca. Diferente de toda a imagem que Felipe construíra em sua mente, Beca é uma garota gorda, negra e segura de si… uma companhia fantástica! E é muito bom ver esses horizontes se abrindo para o Felipe… vê-lo descobrindo que existe um mundo além dos bullies idiotas da escola, que ele pode ter amigos.

Amo ver o Felipe se sentindo parte de um grupo, finalmente. Toda a sequência de Felipe, Caio, Beca e Mel, a namorada dela, na piscina do condomínio é uma das mais lindas… não apenas porque o Felipe está encantado com a visão que é o “Caio de Sunga” (na minha cabeça, a imagem que eu tenho do Caio parece muito com o Gabriel Santana, eu preciso deixar isso registrado), nem mesmo porque Mel percebe que ele está caidinho pelo Caio e diz que “Caio também está caidinho por ele” (!), mas porque é bonito ver o Felipe reconhecer para si mesmo que ele se sentiu parte daquele grupo de amigos, e eles têm uma das conversas mais bonitas naquela noite, antes de dormir, que termina com o Felipe pedindo desculpas por não ter entrado na água e Caio agradecendo por “ele ter ficado por perto”.

LINDO. LINDO. LINDO.

A confiança conquistada aos poucos com a companhia de Caio, que o ajuda a começar a perceber que ele é incrível, a sensação de pertencimento que a amizade de Beca lhe traz e umas latinhas de cerveja (porque sim) ajudam Felipe em um dos momentos mais expressivos e importantes do livro, quando ele está curtindo uma festa julina na praça da cidade e os caras da escola aparecem para atormentá-lo e, pela primeira vez, ele se levanta sem abaixar a cabeça, olha para a cara dos dois e manda eles “se foderem”. É algo tão importante, significativo e poderoso… e talvez mude o Felipe para sempre. Para completar a grande noite, Caio derruba água no seu próprio colchão porque ele também está altinho e acaba dormindo com o Lipe na cama dele.

SÉRIO. PERFEITO.

Naturalmente, e eu realmente acho que qualquer pessoa na posição do Felipe se sentiria assim, as coisas no dia seguinte são estranhíssimas… Felipe está curtindo a sua primeira ressaca, o que já é algo marcante, mas ele não sabe como se comportar depois de ter passado uma noite abraçado com o Caio em sua cama – e uma das minhas coisas favoritas em “Quinze Dias” é o fato de Lipe e caio conversarem sobre as coisas… quando o Lipe não aguenta toda aquela pressão e pergunta se “ele se lembra”, e Caio diz que se lembra, sim, de ter pedido que ele “ficasse ali com ele” quando o Felipe fez menção de se levantar e dormir em outro lugar. E, então, as coisas parecem estar ficando cada vez mais concretas… e, de certa maneira, isso apavora o Felipe!

A transição é fantástica. Para ter coragem de fazer algo, Felipe tem alguns incentivos… ele tem uma conversa de 12 minutos ao telefone com Beca, que lhe diz que “o Caio é meio lerdo, então talvez ele tenha que tomar a iniciativa se gostar dele”, e a sua terapeuta também fala sobre como “ele não precisa ter medo”, e isso faz com que o Felipe se lembre do que a própria avó dizia para ele, e ele vai até a biblioteca na qual a avó trabalhava para pegar emprestado o livro que ela lhe deu para ler da primeira vez que ele lhe disse que “estava com medo” dos garotos da escola: “O Mágico de Oz”. Felipe se vê um pouco no Leão Covarde, e ele espera que agora, mais velho, ele consiga entender algo novo na leitura do livro… algo que possa ajudá-lo a ter coragem.

Como eu disse, amo todas as sequências de Caio e Felipe. Amo todos os pequenos detalhes que constroem essa história. Amo o desconcerto de Felipe com algo tão “simples” quanto o Caio colocando meia bala de iogurte na sua boca, ou a intimidade que eles compartilham naquele “jogo da falha de caráter” antes de dormir, e já perto do fim da estadia de Caio na sua casa, Felipe acorda cedo num dia para ir conversar com a mãe, confessar que está apaixonado e pedir conselhos… e isso nos conduz a uma das sequências mais apaixonantes e catárticas do livro. Dona Rita não é lá muito discreta, como também eu já disse, mas ela é FANTÁSTICA inventando uma desculpa para “não poder participar da quarta musical” e mandando os dois irem para o cinema juntos…

Sério. Fantástica.

E toda a sequência do cinema É A COISA MAIS LINDA DO MUNDO. O filme é claramente ruim, mas nem Caio nem Felipe estão muito ligados no filme… e eu vou confessar: eu já tive uma experiência similar e eu de fato não me lembro nada do filme. Felipe está concentrado no fato de que Caio escorregou a mão pelo seu braço e entrelaçou os dedos dele nos seus, segurando a sua mão, por exemplo, e em tentar ter coragem o suficiente para fazer algo a respeito quando os créditos começam e as luzes não se acendem porque o filme tem cenas pós-créditos. Então, ele se lembra de conselhos, de frases de livro, e se vira para o Caio, que está olhando para ele com expectativa, esperando por aquele momento… aparentemente tanto quanto o Felipe estava esperando.

E eles se beijam.

Ah, eu sou um romântico inveterado. É tão gostosa a sensação de compartilhar com esses personagens as borboletas no estômago daquele primeiro beijo mágico, que é cheio de expectativa e nervosismo, mas também de vontade, de novidade e de sentimento… eu amo como eles se encaixam, se entendem, como eles seguem se beijando quando chegam em casa e dividem uma mesma cama, e então Felipe sente algumas inseguranças virem à tona novamente com a mão de Caio em sua cintura, mas ele fala sobre isso com ele, sem querer acabar com tudo aquilo que parece um sonho… mas que ele torce para que não seja. O carinho absoluto do cafuné que Felipe recebe ou a maneira como Caio segura sua mão e lhe dá um beijo nela.

Simplesmente perfeito.

Eu amo o fato de “Quinze Dias” não resolver absolutamente tudo e deixar tudo perfeito como num último capítulo de novela… afinal de contas, não é assim que é a vida, e foram apenas 15 dias, não é? Ao invés disso, Caio e Lipe estão começando um relacionamento e dando o seu melhor. O dia anterior ao retorno dos pais deixa o Caio meio ansioso, e ele quase “foge” do café no qual estava em um encontro com Felipe depois de ver uns colegas de classe chegarem, e aquilo deixa o Felipe desesperado, paranoico, com a cabeça habitada por todos os piores cenários possíveis, e os dois têm uma conversa franca em “5 minutos sem consequências”, na qual Felipe fala sobre como se sentiu e Caio explica que não tem vergonha dele e jamais teria… mas ele ainda não está pronto para sair do armário.

Ele sabe como seria na escola. Como seria em casa.

Eu leria tranquilamente uma sequência de “Quinze Dias”, explorando outra face dessa história, acompanhando as coisas do ponto de vista de Caio, agora, conforme ele chega num ponto no qual ele estará pronto para sair do armário, para enfrentar a mãe e tudo o que vier depois… mas não é essa a história que Vitor Martins estava nos contando, não aqui e não agora, pelo menos. E quando Caio retorna para a própria casa no 15º dia e “a vida volta ao normal”, a verdade é que a vida não voltou exatamente ao “normal” – não se “normal” for o que era antes. Muita coisa mudou, para ambos, durante esses 15 dias… e eles estão em uma fase nova e mágica da vida, com a sorte de, mesmo não dividindo mais um quarto, estarem a apenas um elevador de distância.

O último capítulo do livro é uma das coisas mais maravilhosas que eu já li… é a conclusão perfeita dessa história. Amo ver o Lipe expressar em palavras tudo o que mudou durante esses dias. E eu amo o momento que ele e Caio compartilham quando Caio manda ele encontrá-lo no elevador e os dois descem “clandestinamente” para a piscina do condomínio, para olhar a lua, para curtir a companhia um do outro porque “eles já estão com saudade” e para brincar de sereia mais uma vez… como no dia em que Felipe se apaixonou por Caio. É tudo tão singelo e, ao mesmo tempo, tão grandioso! Eu não queria me despedir, eu não queria virar a página e me deparar com o fim do livro… mas eu também queria dar a Felipe e Caio a oportunidade de curtirem um ao outro.

“Quinze Dias” me marcou. Eu tenho alguns livros com protagonismo LGBTQIA+ que carrego no coração e que me marcaram imensamente. “Dois Garotos se Beijando”, do David Levithan, é um deles. “O Azul Daqui é Mais Azul”, do Robbie Couch, é outro. “Gay de Família”, do Felipe Fagundes. E, agora, “Quinze Dias”, de Vitor Martins, se une a esse grupo de livros de que sempre me lembrarei com muito carinho e muito amor. A destreza para apresentar esses personagens e construir essa história e essas relações… a sensibilidade, o cuidado e a honestidade em tratar de temas que nos são pertinentes. A humanidade impressionante. Sinto que eu sou mais feliz depois de ler esse livro. E que bom é poder fechá-lo com um apertinho no coração em me despedir, mas sabendo que ele será parte de mim para sempre.

Amei.

 

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