O Auto da Compadecida (2000)

“Não sei… só sei que foi assim”

UM DOS MAIORES MARCOS DO CINEMA BRASILEIRO! E um filme que sempre será maravilhoso e parte de nossa identidade, de nosso povo, de nossa maneira de contar história. Baseado na obra de Ariano Suassuna – não apenas no próprio “Auto da Compadecida”, mas também trazendo elementos de outras obras, como “O Santo e a Porca” e “Torturas de um Coração” –, a versão dessa história dirigida por Guel Arraes e protagonizada por Matheus Nachtergaele e Selton Mello nos icônicos papeis de João Grilo e Chicó, respectivamente, foi lançada inicialmente como uma minissérie em 4 episódios, em 1999, que foi posteriormente reeditada em formato de filme, para lançamento nos cinemas no ano seguinte, se tornando um dos filmes mais aclamados de nossa cultura…

O filme é deliciosamente brasileiro. Representando a realidade de um sertanejo rápido e esperto e de outro frouxo e burro, “O Auto da Compadecida” traz um humor inigualável, ao mesmo tempo em que tece críticas sociais inteligentes de maneira debochada… tudo em um visual irretocável, atuações brilhantes e um texto hilário, ácido e rápido. Há um quê de literatura de cordel que faz parte da identidade de “O Auto da Compadecida”, e como essa é uma história originalmente escrita para o teatro, a linguagem teatral é notável, não apenas no texto, mas também visualmente – um tipo de linguagem que, mais tarde, também foi utilizado em produções como “Hoje é dia de Maria”, que eu amo, e o remake de 2014 de “Meu Pedacinho de Chão”.

Sinto que as atuações de Matheus Nachtergaele e Selton Mello selam a perfeição de “O Auto da Compadecida”. Eles entendem tão bem seus personagens e os entregam com tamanha verdade que é impossível não estar envolvido em questão de poucos minutos… Selton Mello é o Chicó, um homem sonhador, mas medroso, que adora contar causos – e quanto mais absurdos, melhor; e, em caso de maiores explicações necessárias, ele explica: “Não sei. Só sei que foi assim”. Matheus Nachtergaele, por sua vez, dá vida a João Grilo, um homem com uma vida sofrida e que sobreviveu e sobrevive graças à sua esperteza admirável, e sua facilidade para mentir e, consequentemente, conseguir os objetivos que ele quer… e a química e a dinâmica entre eles é perfeita.

Toda a trama da cachorra de Dora que fica doente quando João Grilo e Chicó trocam a comida deles pela da cachorra (porque ela come bife tostado na manteiga, enquanto eles não têm algo tão bom assim) é uma apresentação fascinante para quem são esses personagens, porque Dora quer que o padre venha benzer a cachorra, e João Grilo faz de tudo para conseguir isso. Eu adoro a maneira como ele mente com facilidade, rapidez e segurança, amontoando coisas até conseguir o que quer, com uma cara-de-pau impossivelmente atraente. Isso gera momentos de comédia hilários quando o Major Antônio Morais visita a igreja do Padre João, por exemplo, ou quando o João Grilo entrega o enterro em latim de uma cachorra para o bispo, para se livrar de uma punição ele mesmo…

Mas, no fim, ele dobra também o padre e o bispo!

João Grilo é icônico!

Assim como João Grilo consegue o enterro em latim para a cachorra de Dora e consegue sair ileso depois de ser descoberto, ele também se aventura em ajudar seu amigo, Chicó, a se casar com Rosinha, a nova garota da cidade por quem ele se apaixonou – claro, isso porque o Major Antônio Morais prometeu uma porca recheada de dinheiro que a bisavó de Rosinha (!) juntou durante toda a sua vida de presente para ela… o Major quer um pretendente que seja corajoso e, no mínimo, doutor para poder pensar em casar a sua filha, e Chicó não é nem uma coisa nem outra – não que isso seja lá um grande problema para João Grilo, é claro. INVENTAR HISTÓRIA É COM ELE MESMO! E eu digo: tem como não amar a cara-de-pau com que ele manipula as coisas?!

E aquele “duelo” de Chicó com o Vicentão e o Cabo Setenta?

MARAVILHOSO DEMAIS!

João Grilo, inclusive, planeja se passar por cangaceiro para “matar” Chicó e livrá-lo de uma dívida de 10 mil contos de réis ou “seu couro, seu courinho” para o Major Antônio Morais, mas o que ele não esperava, e o que muda tudo, é que um verdadeiro cangaceiro fosse aparecer pelas bandas de Taperoá justamente agora – e o Capitão Severino tem contas para acertar, mortes para promover… e o Padre Cícero para visitar, desde que ele tenha a garantia de que a gaita que ressuscita os mortos vai ser tocada logo depois? Os cangaceiros tiram a vida do padre, do bispo, do padeiro e da esposa dele, e João Grilo quase escapa com mais um de seus planos, mas a sua esperteza e a sua astúcia não são o suficiente dessa vez… quer dizer, talvez acabem sendo, eventualmente.

Acredito que seja uma unanimidade que toda a sequência após a morte de João Grilo e dos demais é a melhor parte de “O Auto da Compadecida”. A inclusão do demônio, pronto para levar todo mundo para o inferno, o Jesus interpretado por Maurício Gonçalves e, é claro, a maravilhosa Fernanda Montenegro dando vida à Nossa Senhora, que aparece após João Grilo apelar pela sua intercessão, porque é sua única chance de não ser condenado… essa é a cena que, a meu ver, prova o imenso e inegável valor artístico de “O Auto da Compadecida”, que mescla humor, crítica, reflexão e uma pontada de religião de uma maneira que segue sendo entretenimento puro – todos os detalhes conversam entre si para construir essa grande cena do cinema brasileiro!

Luís Melo está excelente como o Diabo, e a interação dele com o João Grilo é hilária, enquanto a interação dele com Jesus e Nossa Senhora é de uma inteligência fenomenal. Além do absurdo e da comédia deliciosa, há, também, muita emoção envolvida em toda essa cena, e a beleza da intercessão de Nossa Senhora, exatamente como os devotos pedem na oração da Ave Maria, é poderosa de forma indizível. Alguns destinos são bem definidos nessa sequência, menos o de João Grilo, que não acha que tenha muito mais que ele possa fazer agora – afinal de contas, essa é a hora da “verdade”, e com ele “sempre foi na base da mentira”, mas Nossa Senhora diz coisas fortíssimas e verdadeiras nas quais João Grilo provavelmente nunca parou para pensar… não daquela maneira.

E, então, ele ganha uma nova chance.

O retorno de João Grilo à vida, mas sem as memórias desse encontro após a morte, é uma nova chance para ele – e somos presenteados por uma série de novos momentos maravilhosos! Eu adoro as reações de Chicó enquanto está se preparando para enterrar o amigo; eu amo as reclamações de João Grilo porque “Chicó promete muito dinheiro”; o casamento de Chicó e Rosinha, na esperança de que a porca da bisavó salve “seu couro, seu courinho”, mas o dinheiro não vale nada mais; o João Grilo falando sobre estar cansado dessa história de “fica rico, fica pobre”; o desespero de Chicó porque, sem 10 mil contos de réis, deve ao Major o couro das suas costas (“Ô promessa desgraçada. Ô promessa sem jeito”); e a solução encontrada por João Grilo e Rosinha.

Inclusive, uma dupla promissora de espertos!

“O Auto da Compadecida” é um espetáculo, e é um prazer imenso poder dizer que ELE É NOSSO! É nosso povo, nossa história, nossa literatura e tradição. Profundamente divertido e humano, o filme nos arranca risadas certeiras, possíveis lágrimas e nos deixa material para reflexão… não é à toa que é um dos filmes mais bem avaliados do cinema brasileiro, nem que tenha feito tanto sucesso indo aos cinemas mesmo depois de ter sido exibida como minissérie na TV aberta, porque “O Auto da Compadecida” é uma daquelas obras às quais sempre queremos retornar, e que nos proporciona alguma sensação de aconchego quando estamos de volta… quando reencontramos João Grilo e Chicó e, mais uma vez, nos tornamos ouvintes e cúmplices de suas histórias.

 

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