Um Ano Solitário (Alice Oseman)
“Meu nome é
Victoria Spring. Acho que você precisa saber que invento uma porção de coisas e
depois me lamento. Gosto de dormir e de blogar. Um dia, vou morrer”
Publicado
originalmente em 2014, “Um Ano Solitário”
é o romance de estreia de Alice Oseman, e é o primeiro contato que temos com
personagens como Tori Spring e Nick-e-Charlie, cujo relacionamento seria
aprofundado em uma web comic
futuramente, possivelmente se tornando a obra de maior reconhecimento de Alice
Oseman: “Heartstopper”. Com uma
história repleta de referências, um quê de mistério e personagens fascinantes
(tem como não se encantar por Michael
Holden?), “Um Ano Solitário” é o
retrato de uma juventude que está enfrentando os seus próprios problemas,
enquanto lidam com amizades que vêm e vão, possíveis romances, preconceitos,
incertezas, transtornos mentais… e é uma leitura deliciosa de se fazer, que
flui com facilidade.
Tori Spring
é uma adolescente que não sabe bem qual é a sua missão no mundo – ela nem tem
certeza de que ela queria estar no
mundo, para começo de conversa. Diferente da maioria das pessoas ao seu redor
(ou pelo menos é nisso que ela acredita, porque adolescente tem um costume de
se sentir “o diferente”), Tori Spring não gosta de festas, não gosta de
socializar com as pessoas, nem sempre tem vontade de levantar da própria cama
ou de ir para a escola, e rotineiramente se esconde atrás de um copo de
“limonada diet”. Então, sua vida acaba se transformando
quando 1) o seu melhor amigo de infância aparece na escola; 2) um garoto
misterioso, mas curiosamente interessante,
tenta se aproximar dela; e 3) um blog de “pegadinhas” assola o Higgs.
Então, Tori precisa, talvez, “sair de sua
zona de conforto”.
A escrita de
Alice Oseman me deixa, muitas vezes, dividido. Em alguns momentos, se nota
certa imaturidade na sua escrita, que
acaba sendo o reflexo da pouca idade que ela tinha quando escreveu esse livro
(algo entre 18 e 20 anos), e às vezes sinto que ela está tentando escapar da
narrativa em primeira pessoa e lançar sobre os eventos uma voz mais madura que
não pertence a Tori Spring e, na verdade, tampouco a ela mesma, que tinha
acabado de sair dessa fase… também fico me perguntando se algumas facetas mais
“conservadoras” são exclusivas de Tori Spring ou se pertencem, também, a Alice
Oseman, mas isso eu só descobrirei se ler outras obras em prosa dela – e é
possível que o faça, porque, apesar de pequenos pontos, eu gosto bastante da
escrita.
Ela é envolvente, rápida… acaba por nos
conquistar!
Como eu li “Heartstopper” antes de ler “Um Ano Solitário”, eu chego ao livro na
contramão, de certa maneira, e acabo conferindo a personagens como Nick e
Charlie uma importância maior do que a de “meros personagens secundários”. É
interessante acompanhar, do ponto de vista de Tori, elementos como a relação
dela e do irmão com a mãe, o namoro de Charlie com Nick Nelson e, é claro, o
transtorno alimentar de Charlie… e Alice Oseman faz um trabalho muito bom
transmitindo uma sensação quase sufocante
quando percebemos como tudo afeta a Tori, como ela talvez gostaria de poder fazer mais do que ela faz, como
ela se sente parcialmente responsável pelo irmão, mas como ela também tem a sua
própria vida, que às vezes ela parece “estar deixando de viver”.
Algumas
passagens do livro são propositalmente chocantes, como o momento em que Oliver
liga desesperado para Tori, dizendo que o Charlie “está trancado na cozinha”, e
Tori volta correndo para casa porque os pais estão viajando e ela é a única
pessoa que pode impedir que o Charlie faça alguma besteira – afinal de contas,
foi ela quem encontrou o Charlie na banheira cheia de sangue quando as coisas
ficaram muito feias no passado, antes de ele começar o seu tratamento… mas por
mais que ela queira acreditar que o Charlie “está bem”, acaba não sendo uma
verdade absoluta, e aquela angustiante cena da cozinha, na qual Tori o encontra
todo sujo de sangue e com todas as comidas retiradas da geladeira e do armário
deixa isso bastante evidente.
Já tendo
lido “Heartstopper”, também é profundamente
desconfortável ler o nome de Ben
Hope, e eu nunca tinha de fato parado
para pensar no fato de que a Tori não sabe de toda a história entre o Ben e
o Charlie – ou ao menos não sabia, no início de “Um Ano Solitário”, quando Ben está começando a sair com a Becky, a
melhor amiga de Tori (de quem ela nem tem certeza se gosta tanto assim, ela tem
dificuldade para saber se sente
alguma coisa). E quando Ben se aproxima de Tori para saber “se Charlie contou
alguma coisa”, e ele acredita que sim, ele bate em Charlie no Truham em uma das
cenas mais angustiantes do livro… uma cena que não chegaremos a ver adaptada em
“Heartstopper”, porque a história de
Ben Hope já foi encerrada na segunda temporada.
Mesmo com
isso tudo acontecendo com Charlie, mesmo com o relacionamento dele com Nick
sendo um ponto importante do livro, “Um
Ano Solitário” é SOBRE A TORI, e ela é uma protagonista incrível, no fim
das contas. Ainda que ela não tenha procurado (e não chegue a procurar) ajuda
profissional, ela apresenta traços de depressão que são bem traduzidos através
de suas ações, de sua indiferença e falta de vontade, e através de seus
pensamentos… afinal de contas, com a narração em primeira pessoa, é como se estivéssemos dentro da mente de Tori Spring,
e esse é um lugar confuso, cheio de pensamentos e, ao mesmo tempo, ironicamente
vazio. Nem ela mesma se entende, e eu
acho que é por isso que a obra de Alice Oseman conversa tanto com o público
adolescente.
Um dos
pontos de virada na vida de Tori Spring é, com toda a certeza, a chegada de
Michael Holden – e ele é facilmente o meu
personagem favorito de “Um Ano Solitário”. De certa maneira, Michael Holden
é um enigma, assim como Tori Spring,
e eu quase desejo poder estar dentro da mente dele também. Os dois são atraídos pela curiosidade de post-its com
setas que os levam até um dos laboratórios de informática da escola e a
primeira “aparição” do Solitaire, o blog que vai deixar o Colégio Higgs de cabeça para baixo, com uma série de
“pegadinhas” que, eventualmente, vão se tornando perigosas. Por algum motivo
que Tori não é capaz de entender, Michael Holden parece “querer ser seu amigo”,
e ele quer que os dois investiguem juntos toda a história de Solitaire…
TODAS as
passagens de Tori e Michael são MARAVILHOSAS. Eu adoro o fato de a capa do
livro já avisar que “essa não é uma história de amor”, e de fato o romance de Tori e Michael ser uma parte
diminuta da relação deles, algo que “pouco importa”, na verdade – pelo menos
nessa fase em que estamos acompanhando a Tori. Aqui, Tori precisa de Michael
para que ela não caia em um espiral perigoso e, sem que ela saiba, Michael a
quer por perto porque ele também precisa
dela… e mesmo com tantos altos e baixos e com a Tori sendo alguém muito difícil em vários momentos,
Michael é persistente, charmoso e encantador, então ele acaba sempre estando
por perto quando ela menos espera e quando ela mais precisa. Todo mundo merecia ter um Michael por perto.
Gosto
particularmente de quando Michael acaba passando o dia com a Tori e com o
Oliver na casa dos Spring depois da crise de Charlie na cozinha: os pais o
levam para o hospital e Michael aparece para saber se a Tori está bem, e eles
passam um dia simples, mas no qual eles curtem a companhia um do outro… e, então, Tori começa a fazer coisas que
são estranhas para ela, mas que, quando percebe, ela já as fez, como ir até a
casa de Michael de surpresa no dia seguinte, um domingo, e então eles passam o
dia juntos novamente, andando pela cidade e se divertindo meio que despretensiosamente.
É bonito ver como a companhia um do outro faz bem a ambos, mesmo que a Tori
acabe não sabendo como agir e se autossabote
no fim, “estragando” o dia outrora perfeito.
E, depois,
ela se culpa por isso.
Algo quase rotineiro para Tori.
A jornada de
Tori envolve aprender a aceitar e a mostrar como ela se sente, a não se sentir não merecedora de afeto e de amizade e a
reconhecer que as pessoas podem vê-la como uma pessoa incrível – Michael Holden a vê assim… e é como ela também aprende a
vê-lo. Gosto de como eles vão se conhecendo mutuamente, de como Tori vê um
Michael praticamente sem máscaras quando vai a uma competição de patinação
dele, ou de como eles assistem a um filme juntos, como conversam naturalmente
quando Tori simplesmente deixa que as
coisas fluam… há muita beleza, também, na maneira como Tori se sente
acolhida no abraço de Michael em determinado momento, e de como ele representa,
de certa maneira, uma força quando tudo o mais parece estar desmoronando…
E, é claro,
há o Solitaire. O blog está “pregando peças” no Higgs, mexendo com o sistema de
som e colocando a mesma música para
tocar o dia inteiro, por exemplo, ou invadindo reuniões e colocando vídeos… e
Tori reluta em acreditar em algo que Michael percebe com muita rapidez: Solitaire parece estar querendo chamar a
atenção de Tori. Afinal de contas, seriam “coincidências demais” que os
“ataques” de Solitaire fossem todos com coisas das quais ela gosta, como “Star Wars”, gatos, violino… a gota
d’água talvez seja quando, durante a festa de aniversário da Becky, o Solitaire
instiga uma multidão a bater em Ben Hope, porque “ele machucou o Charlie”. Claramente, isso tem mesmo a ver com Tori
Spring e ela não pode mais negar.
A presença
constante do Solitaire acaba atormentando
a Tori – mesmo que ela diga que “não se importa”, inicialmente, ela pensa
bastante a respeito disso, e ela acaba se sentindo sobrecarregada com a
sensação de que “ninguém se importa”. Toda a sequência do espancamento de Ben
Hope me faz pensar muito em “Nerve”,
porque as pessoas se dividem basicamente em dois grupos: um que está batendo em Ben Hope; e outro que não está fazendo nada para impedir. No
fim das contas, ambos são culpados, não? De certa maneira, esse é um dos pontos
que causam tanto incômodo e insatisfação com o mundo em Tori: o fato de que parece que ninguém se importa
de verdade com nada e com ninguém… então de que adianta tudo?
Os ataques
do Solitaire, que talvez comecem como coisas mais “inocentes”, acabam
escalonando e se tornando cada vez mais
perigosos… durante um show, por exemplo, uma aparição surpresa do Solitaire
acaba colocando a vida de muitas pessoas em perigo com a explosão de fogos de
artifício, e por segundos a própria Tori não perde a vida, mas Michael consegue
despertá-la para a realidade e fazer com que ela pule no rio congelante que é a
sua única rota de fuga de fogos de artifício que estão prestes a estourar bem na sua cara – e ela acaba com um
braço queimado e mais dúvidas. Afinal de contas, o Solitaire acabou de anunciar
o seu “ataque final” para a próxima sexta-feira, e talvez Tori seja a única que
se importa o suficiente para fazer
algo.
E isso se
torna uma obsessão.
Michael e
Tori compartilham, na escola vazia durante uma nevasca, uma das sequências mais bonitas dos dois, quando ele a faz brincar com ele, em uma guerra de bolas
de neves ou uma corrida em cima das cadeiras giratórias do laboratório de
informática, e depois eles adormecem juntos sobre as mesas, olhando para a neve
caindo na claraboia da sala… quando Tori desperta, Michael não está ao seu
lado, e ele está discutindo com Lucas Ryan, o ex-melhor amigo de infância de
Tori que chegou à sua escola recentemente e parece estar “querendo chamar a sua
atenção” desde sempre, mas eles já não são mais os mesmos que eles eram quando
eram crianças… e Tori percebe que Michael quer que Lucas entre naquela sala e conte alguma coisa para ela.
Tori não
juntou os pontos, mas a verdade é que sempre
foi muito óbvio que Lucas Ryan era a mente por trás do Solitaire – e que
tinha tudo a ver com a “obsessão” que ele desenvolveu por Tori ou por uma
projeção dela que ele criou em sua cabeça. A “grande revelação” de que Lucas é
o Solitaire é perfeitamente condizente com a construção de “Um Ano Solitário” até ali, é verdade, mas eu também acho um pouco
anticlimático o fato de que isso era
muito óbvio desde o começo, então o livro tenta brincar com um quê de
“mistério” e “investigação” e não consegue, porque não chegamos realmente a
desconfiar de qualquer outra pessoa… em parte, eu gostaria de ter recebido uma
surpresa, mas isso não acontece. Alice Oseman não é boa no mistério, preciso
dizer isso.
O dia
seguinte à revelação, que é a fatídica sexta-feira, também traz uma sequência
que acaba sendo um tanto brega demais
para ser convincente, mas é o início de um bom clímax, no fim das contas…
Tori corre para a escola antes das 6h da manhã para descobrir a reunião do
Solitaire e impedir o que quer que eles estejam planejando, e Becky acaba
aparecendo de surpresa na escola, para lhe dar apoio, fortalecendo a amizade incomum que elas têm, mas forte, porque
Becky se importa mesmo depois de elas terem se afastado por causa de toda a
história de Ben Hope (!) e como Tori estava agindo. Mas todo o embate entre
Becky e Tori com o Solitaire, que não é mais liderado por Lucas, não é uma das
minhas sequências favoritas do livro, no fim das contas…
Mas eles
conseguem colocar o plano deles em ação…
E COLOCAM FOGO NO HIGGS!
Isso rende,
certamente, o melhor clímax que “Um Ano
Solitário” poderia ter. Com a escola em chamas, Tori sente a necessidade de
fazer alguma coisa – porque se ela
não fizer, ninguém mais fará, e então a escola será toda destruída. Com isso,
no entanto, ela acaba se colocando em perigo, e Michael aparece fazendo de tudo
para salvar a sua vida… não é exageradamente fantasioso e/ou romântico, e isso
é muito bom, porque acaba passando uma sensação perfeita de nervosismo e
angústia, especialmente quando Tori acredita que Michael morreu no incêndio e
então ela enfrenta uma sensação de fracasso: ela sente que fracassou com
Michael, que fracassou com a escola, que fracassou com Charlie… e ela está, naquele momento, no terraço da
escola.
Tori subiu
ali apenas para fugir das chamas do lado de dentro e salvar a própria vida? Ou
parte dela estava disposta a “cair” lá de cima? Achei muito perspicaz a maneira
como Alice Oseman conduziu essa parte da narrativa, por sinal. Charlie,
gritando “Não!” para a irmã lá de
baixo, parece acreditar que Tori está pensando em se jogar, e talvez Tori esteja,
em parte, mas não inteiramente, talvez não conscientemente… é confuso, é vago,
e tem a ver com a sensação de vazio que muitas vezes habita Tori. E talvez não
tenha sido o amor que salvou a sua vida nem nada clichê desse tipo, mas a
chegada de Michael Holden é algo muito bem-vindo, porque é bom saber que ele está vivo, no fim das contas, e que,
acima de tudo, Tori não está sozinha. Ela
não está sozinha.
Antes de
encerrar, preciso fazer um comentário a respeito da tradução, e como é uma pena
que o título em português, “Um Ano
Solitário”, tenha perdido as nuances possíveis de “Solitaire”, que representava tanto o site, quanto o jogo que Tori
estava jogando quando Lucas a reencontrou quanto a sensação de solidão que é,
em parte, o que Tori sente. Também encontrei, durante a leitura, problemas de
tradução notáveis para quem é fluente em inglês (“Estamos assistindo ‘A Bela e a Fera’”; “[…] livros que eu não tenho
lido”; “A última coisa de que me lembro pensando […]”) e, infelizmente, por
alguns segundos isso interrompe a
leitura e me faz pensar mais na tradução do que na história, atrapalhando a
imersão… pode parecer coisa “pequena”, mas é importante e seria bacana uma revisão em futuras edições.
Por fim, a
conclusão do livro tem um tom de melancolia que eu julgo quase inesperado. E,
quando penso sobre isso, eu gosto da proposta. Tori estava mal. Ela esteve muito
mal por muito tempo. E ela não
vai se recuperar magicamente, nem de uma hora para outra. Mas acho que naquele
momento, enquanto Tori e Michael saem da escola em chamas acompanhados de
Lucas, Becky, Nick e Charlie (fortíssima a fala de Charlie sobre como ele sabia que a irmã não estava bem, mas não fez nada, mostrando como os dois têm
sentimentos e culpas muito similares um para com o outro), mesmo que eles não
tenham muita ideia do que vai acontecer no futuro, o que importa é que eles não estão sozinhos… nenhum deles
está sozinho. Uma mensagem poderosa!
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